06/09/13

Uma política para as artes? (2)

[Nota: É favor consultar artigo anterior, para contextualizar o actual.]
Onde se celebra o centenário de 1913 e se distribuem umas chapadas em honra da Sagração da Primavera.

1913

O fascínio místico dos números redondos e até de alguns primos, misticismo a que a mente ocidental parece condenada desde a acusmática de Pitágoras, recorda-nos que faz agora 100 aninhos estávamos em 1913. Confesso que não tenho grande estima por efemérides, mas no caso que nos traz aqui há duas ou três boas razões para recordar.
1913 foi quando Igor Stravinski e Nijinski estrearam o bailado A Sagração da Primavera, violentamente apupado pelo público e zurzido pela crítica. Aos primeiros acordes, estranhos e dissonantes aos ouvidos das regras oitocentistas, às primeiras figuras coreografadas, alheias ao classicismo em pontas reinante, a plateia entrou num apupo que descambou alguns minutos depois num arraial de pancadaria generalizada; foi «necessária» a intervenção da polícia para repor a ordem. Felizmente existe essa coisa de que já falámos no artigo anterior: o filtro do tempo. Nitidamente Stravinski e Nijinski não estavam a fazer «arte para o povo» – pela bitola dos comentários que nos últimos dias tenho lido na blogosfera e no Facebook acerca de algumas manifestações de arte recentes em Lisboa, o trabalho de Stravinski e Nijinski jamais deveria ser financiado e muito menos apoiado pelas instituições oficiais. [Nota: avisaram-me que o meu tom de resposta a alguns desses comentários não tem sido o mais aconselhável e cordato. Resposta: estou a celebrar o centenário de A Sagração da Primavera, e isso, para ser feito com convicção, exige umas boas chapadas na plateia.] [imagem: figurino de Nicolas Roerich para o bailado Sagração da Primavera]

O intonarumori 
1913 foi também o ano em que Luigi Russolo publicou o manifesto L'arte dei rumori / A Arte do Ruído / Art Of Noise, oferecendo ao mundo um novo mundo sonoro. Pondo de parte aspectos circunstanciais e as liberdades poéticas do manifesto, o que nos diz esse texto? Diz que os futuristas querem fazer uma arte do seu tempo, e que o seu tempo é um tempo industrial, que já nada tem a ver com a singela sonoridade da natureza selvagem, florida e pipilante; é um tempo em que os transeuntes atravessam o ar poluído das ruas plenas de ruídos citadinos, e os proletários geram clangores industriais que atingem um nível sonoro jamais imaginado pela natureza; é um tempo em que nenhum retrato sonoro da nossa época pode ser fidedigno se esses ruídos não estiverem lá – sem eles, estaremos a construir uma ilusão que mente acerca da nossa própria vida, que nos aliena da nossa condição social, política e cultural. O grupo de artistas sonoros de Russolo inventa um aparelho capaz de reproduzir a realidade sonora do nosso quotidiano – o intonarumori –, e antecipa no plano teórico a criação da música concreta, da musica electrónica e de uma parte da música experimental. Por assim dizer, Russolo e o seu grupo pré-inventam Pierre Schaeffer, Stockhausen, John Cage, e tantos outros. O manifesto de Russolo é um desses momentos históricos que nos mostra que os artistas conseguem ver a realidade presente melhor que todos os políticos e economistas juntos, e que conseguem antever as consequências futuras dos nossos actos presentes como nenhum político jamais conseguiu antever. [Nota: Neste aspecto haveria muito a dizer sobre o trabalho dos escritores de ficção científica, mas o que há a dizer não caberia neste reduzido espaço.]

Hugo Ball em performance
Estiquemos um pouco a efeméride (as efemérides são sempre assim, muito elásticas, o que me irrita um bocadinho) e vamos encontrar em 1914 Hugo Ball a entregar-se às autoridades do outro lado da trincheira. Juntamente com outros artistas que têm a coragem de ser suficientemente cobardes para desertar da primeira guerra a que uma ínfima elite da humanidade conseguiu imprimir um carácter global, refugia-se na Suíça, território neutro mais à mão de semear. Aí formam um grupo que viria a ser conhecido por Cabaret Voltaire. Mas antes de encontrarem uma casa que abrigasse o cabaré e de lhe darem esse nome definitivo, andaram de café em café, fazendo coisas estranhas e inomináveis à época (hoje designadas performance), onde angariaram a fama de «perigoso grupo de anarquistas e esquerdistas». Este perigoso grupo viria a dar origem ao movimento Dada, e com ele (e outros) a história contemporânea da arte, do pensamento e das atitudes perante a sociedade iria sofrer uma revolução. O público burguês respondeu exactamente como o Cabaret Voltaire/Dada tinha previsto e pretendido: indignando-se, despertando emoções recalcadas pela apneia moral dos cantões suíços [Nota: vide Dr. Ox, de Júlio Verne], partindo-lhes a casa toda.

Por cá, e contra o que é o nosso costume (ou contra a imagem idealizada dos nossos costumes?), uma apreciável soma de artistas acompanhava o andamento destas vanguardas e num ou noutro caso até o antecipava. Em 1917, finalmente, é publicado o primeiro número da revista Portugal Futurista. Este primeiro número foi também o último, acabando por ser apreendido pela polícia quando já se encontrava nos escaparates, por ordem da comissão de censura.
Mas então, perguntarão vocês, se nessa época havia uma comissão de censura, como se explica que a revista tenha conseguido ser impressa e a ordem de apreensão só tenha sido dada depois de o exemplar já se encontrar exposto? Esta é a pergunta cuja resposta vale um milhão e justifica trazermos o acontecimento para dentro deste artigo: A censura actuou em resposta a uma denúncia de um cidadão comum, que se queixou da «linguagem despejada» do texto Saltimbancos, de Almada Negreiros. Este texto, na linha do movimento futurista, adoptava o interseccionismo (uma espécie de cubismo aplicado à narrativa, acrescentando novas dimensões ao pensamento linear da escrita – vide Vilém Flusser). Aquela denúncia, que mata à nascença uma revista que poderia ter-se tornado uma das principais expressões dos movimentos vanguardistas em Portugal, não pode deixar de se associar no nosso espírito às altissonantes denúncias que acusam, neste nosso Setembro de 2013, um grupo actual de performers de ter mijado em cima de retratos de Passos Coelho e companhia. Felizmente não há comissão de censura (ou será melhor dizer: «ainda não»), e os artistas em questão continuam em liberdade (quero eu dizer: não estão na prisão).
Mas a «prisão» de um artista (e, potencialmente, a de qualquer cidadão) não se reduz à caricatura de quatro paredes, um tecto e uma janela com grades. Passa por muitos outros e variados constrangimentos, um dos quais pode ser a moral pública, em especial quando essa moral (ou estética, vai dar no mesmo) encontra os meios institucionais de se materializar normativamente e se traduz em coações (ou simplesmente limitações) físicas e materiais.


Alguns dos denunciantes da performance em questão (refiro-me à actual, não às de 1913) têm além disso responsabilidades acrescidas: têm púlpitos de grande audiência, alguns são jornalistas encartados e activos, gerem Facebooks com centenas ou milhares de seguidores, e estão muito claramente a incitar à instituição duma censura e ao corte do que ainda resta de apoios à criação artística fora do mainstream. É a esses denunciantes, a essa plateia conservadora, violentamente agressiva, sectária e censória, que eu, em honra do centenário da Sagração da Primavera, quero distribuir tantas chapadas quantas permitam as minhas forças.

[continua no próximo artigo]

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