09/09/13

Uma política para as artes? (3)

[continuação da série sobre artes e cultura; ver artigos (1), (2)]

Sobre os modos de produção artística

As variantes quer da organização do trabalho artístico quer da situação subjectiva do artista são virtualmente infinitas. Digamos que no limite cada obra e cada autor constituem um caso específico. No entanto, quanto aos modos de produção, podemos distinguir dois grandes grupos:
  • Num extremo temos a produção artística individual, inteiramente controlada e organizada por um autor solitário; podemos neste caso falar de um modo de produção individualizado e independente, em certa medida comparável ao artesanal.
  • No outro extremo temos um modo de produção colectivo em que a organização do trabalho artístico e os respectivos meios de produção são dominados por uma gestão empresarial; podemos neste caso falar de uma produção industrial e de um fenómeno de proletarização do trabalho artístico.
Entre estes dois extremos encontramos uma multidão de casos específicos, como é próprio das artes.



A proletarização das artes

Comecemos por abordar a produção artística sujeita a uma organização gerida pelo capital. Nestes casos encontramos uma actividade normalizada nos seus processos de trabalho, legislada nas relações de trabalho, tabelada nas relações salariais. A existência frequente de sindicatos nesses sectores faz prova real da proletarização do sector (a criação de sindicatos está ligada ao fenómeno da proletarização, ou, dito doutra forma, à existência de condições para a criação duma consciência colectiva e respectiva organização de classe).
O exemplo típico da produção artística normalizada e conforme ao modo de produção capitalista é-nos dado pela grande indústria do cinema. Aí encontramos:
  • uma força de trabalho com a energia, a formação e o conhecimento necessários à produção artística;
  • uma entidade que detém os meios de produção, os controla e decide o que fazer com eles. Esta entidade é vulgarmente designada «produtor» – nome muito enganoso, que manterei entre aspas quando diga respeito a essa entidade, porque de facto o «produtor» apenas investe capital e controla o processo de produção, sendo a verdadeira produção (de valor e de objectos) da responsabilidade dos trabalhadores contratados.
Para que tudo corresponda ao modelo capitalista de produção, lá temos um exército de reserva enfileirado à porta dos estúdios ou das «produtoras», à espera de trabalho – o que, por seu turno, permite um desequilíbrio contínuo na repartição do valor gerado pela produção artística.
O facto de a produção de muitos destes trabalhadores ser eminentemente intelectual camufla outro facto: eles fazem parte dum processo organizado e controlado pelos detentores do capital investido. O artista posto nesta situação encontra-se proletarizado, ainda que ele próprio não goste de o reconhecer; é ele quem cria o objecto e o valor acrescentado ao objecto; mas é a entidade patronal quem controla os meios de produção, a transformação do valor produzido em valor monetário, e a repartição desse valor entre todas as pessoas envolvidas na produção (ou não, caso dos accionistas).
Assim se compreende que certos realizadores famosos pelo seu génio na velha Hollywood fossem enviados de férias para o México no final das filmagens, de forma a não interferirem na fase final da produção do filme (montagem, etc.). Se tivermos em conta que faz sentido definir a montagem como momento fundamental da obra cinematográfica (e que o cinema só terá nascido no momento em que se fez a primeira montagem, e não no momento em que se inventou a tecnologia da máquina de filmar), é fácil perceber que os gestores do capital realizam aqui um dos seus truques preferidos: compartimentar a produção, compartimentar as funções, para melhor controlar o processo de produção a todos os níveis.
A presença do engenho intelectual – pessoal e intransmissível, à semelhança da energia física – na indústria cinematográfica simula a independência da criação artística. Mas ao final a questão decisiva consiste em saber quem detém o controle dos meios de produção e dos seus fins (comerciais ou outros). Este controle inclui o que pode parecer à primeira vista uma espécie de «selecção natural» que começa na fase da proposta de argumento e guião. Um argumento ou um guião que não corresponda a formas consagradas de sucesso de bilheteira tem muito poucas hipóteses de obter a aprovação do «produtor» e chegar ao plateau.
Deste modelo de produção, muito claro e tipificado na grande indústria de cinema, encontram-se variantes mais ou menos evidentes noutras áreas da produção artística.


A produção colectiva não proletarizada

Existem outros modos de produção artística, nos quais todo o processo é controlado por quem nele trabalha. Nestes, as pessoas optam por controlar directamente os meios de produção utilizados (ainda que para isso tenham de utilizar recursos mais modestos); trabalham verdadeiramente em equipa – ou seja, entendem-se entre si, e não por intermédio de um gestor/chefe/director/produtor –, para definirem e controlarem o rumo da produção artística de princípio a fim. A enorme diferença de naturezas entre os dois modos de produção revela-se no produto final – modos de produção diferentes dão origem a produtos essencialmente diferentes (qualquer espectador não especializado consegue detectar essa diferença em poucos minutos ou segundos); a presença ou ausência da separação de poderes e funções, ao articular de formas opostas o controle da produção, embebe-se no produto final e determina uma parte do seu carácter.
Neste modo de produção, o caso mais frequente é o de encontrarmos uma figura directora (o encenador, o coreógrafo, o realizador, etc.) que tende a dirigir o esforço criativo e experimental do resto da equipa. A predominância desta atitude organizativa compreende-se, face ao modelo dominante de comportamentos e organização do trabalho donde partem as pessoas envolvidas – a cultura dominante enforma-as e impõe certos métodos, relações e hierarquias de trabalho.
No entanto há casos em que – independentemente do facto de existir uma ideia ou projecto inicial, de autoria individual, que despoleta o processo – os membros do grupo de trabalho confiam mutuamente nas ideias e na capacidade produtiva uns dos outros e relaxam os cânones directivos de organização do trabalho. Dá-se então um processo de experimentação e desenvolvimento do trabalho que no final produz resultados interessantes. Na verdade, é de esperar que quanto menos o processo corresponda aos modelos dominantes de organização do trabalho, mais fácil seja desaguar em resultados inovadores, por vezes inesperados dos próprios participantes. Assinale-se que nada disto retira a importância de uma figura «directora» em certos casos – nas artes de palco e no cinema, por exemplo, a existência de um olhar exterior ao palco, capaz de abarcar uma visão geral da cena e do processo de trabalho, é da maior importância.
Segundo pude entender até hoje, alguns teóricos portugueses (incluindo responsáveis pelo ensino da disciplina nas escolas de cinema) tendem a definir o cinema de autor como aquele em que o realizador controla em absoluto todo o processo: escrita de argumento, guião, filmagem, montagem, etc. Julgo que esta ideia resulta de um compreensão defeituosa acerca da natureza das artes colectivas e pluridisciplinares (entre as quais avulta o teatro e o cinema). E no entanto a própria indústria cinematográfica reconhece e honra a natureza colectiva da produção cinematográfica, tendo por regra incluir na ficha técnica todas as pessoas que trabalharam no filme, desde o primeiro-assistente de realização até ao tarefeiro que apenas trabalhou um dia como condutor para ir buscar um actor ao aeroporto.


A produção colectiva não proletarizada – que poderíamos designar independente, embora este termo também se tenha tornado confuso na teoria e na crítica – não vive fora deste mundo. Está também ela sujeita às regras dominantes de mercado, que condicionam a sua divulgação, comercialização, etc. Apesar disso é importante identificar esse momento fundamental – o modo de produção – que marca definitivamente a diferença, dando origem a um produto artístico de natureza distinta da produção industrial/proletarizada.


[continua no artigo seguinte]


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