Sobre os modos de produção artística
As variantes quer da organização do trabalho
artístico quer da situação subjectiva do artista são virtualmente
infinitas. Digamos que no limite cada obra e cada autor constituem um
caso específico. No entanto, quanto aos modos de produção, podemos
distinguir dois grandes grupos:
- Num extremo temos a produção artística individual, inteiramente controlada e organizada por um autor solitário; podemos neste caso falar de um modo de produção individualizado e independente, em certa medida comparável ao artesanal.
- No outro extremo temos um modo de produção colectivo em que a organização do trabalho artístico e os respectivos meios de produção são dominados por uma gestão empresarial; podemos neste caso falar de uma produção industrial e de um fenómeno de proletarização do trabalho artístico.
Entre estes dois extremos encontramos uma multidão
de casos específicos, como é próprio das artes.
A proletarização das artes
Comecemos por abordar a produção artística
sujeita a uma organização gerida pelo capital. Nestes casos
encontramos uma actividade normalizada nos seus processos de
trabalho, legislada nas relações de trabalho, tabelada nas relações
salariais. A existência frequente de sindicatos nesses sectores faz
prova real da proletarização do sector (a criação de sindicatos
está ligada ao fenómeno da proletarização, ou, dito doutra forma,
à existência de condições para a criação duma consciência
colectiva e respectiva organização de classe).
O exemplo típico da produção artística
normalizada e conforme ao modo de produção capitalista é-nos dado
pela grande indústria do cinema. Aí encontramos:
- uma força de trabalho com a energia, a formação e o conhecimento necessários à produção artística;
- uma entidade que detém os meios de produção, os controla e decide o que fazer com eles. Esta entidade é vulgarmente designada «produtor» – nome muito enganoso, que manterei entre aspas quando diga respeito a essa entidade, porque de facto o «produtor» apenas investe capital e controla o processo de produção, sendo a verdadeira produção (de valor e de objectos) da responsabilidade dos trabalhadores contratados.
Para que tudo corresponda ao modelo capitalista de
produção, lá temos um exército de reserva enfileirado à porta
dos estúdios ou das «produtoras», à espera de trabalho – o que,
por seu turno, permite um desequilíbrio contínuo na repartição do
valor gerado pela produção artística.
O facto de a produção de muitos destes
trabalhadores ser eminentemente intelectual camufla outro facto: eles
fazem parte dum processo organizado e controlado pelos detentores do
capital investido. O artista posto nesta situação encontra-se
proletarizado, ainda que ele próprio não goste de o reconhecer; é
ele quem cria o objecto e o valor acrescentado ao objecto; mas é a
entidade patronal quem controla os meios de produção, a
transformação do valor produzido em valor monetário, e a
repartição desse valor entre todas as pessoas envolvidas na
produção (ou não, caso dos accionistas).
Assim se compreende que certos realizadores
famosos pelo seu génio na velha Hollywood fossem enviados de férias
para o México no final das filmagens, de forma a não interferirem
na fase final da produção do filme (montagem, etc.). Se tivermos em
conta que faz sentido definir a montagem como momento fundamental da
obra cinematográfica (e que o cinema só terá nascido no momento em
que se fez a primeira montagem, e não no momento em que se inventou
a tecnologia da máquina de filmar), é fácil perceber que os
gestores do capital realizam aqui um dos seus truques preferidos:
compartimentar a produção, compartimentar as funções, para melhor
controlar o processo de produção a todos os níveis.
A presença do engenho intelectual – pessoal
e intransmissível, à semelhança da energia física – na
indústria cinematográfica simula a independência da criação
artística. Mas ao final a questão decisiva consiste em saber quem
detém o controle dos meios de produção e dos seus fins (comerciais
ou outros). Este controle inclui o que pode parecer à primeira vista
uma espécie de «selecção natural» que começa na fase da
proposta de argumento e guião. Um argumento ou um guião que não
corresponda a formas consagradas de sucesso de bilheteira tem muito
poucas hipóteses de obter a aprovação do «produtor» e chegar ao
plateau.
Deste modelo de produção, muito claro e
tipificado na grande indústria de cinema, encontram-se variantes
mais ou menos evidentes noutras áreas da produção artística.
A produção colectiva não proletarizada
Existem outros modos de produção artística, nos
quais todo o processo é controlado por quem nele trabalha. Nestes,
as pessoas optam por controlar directamente os meios de produção
utilizados (ainda que para isso tenham de utilizar recursos mais
modestos); trabalham verdadeiramente em equipa – ou seja,
entendem-se entre si, e não por intermédio de um
gestor/chefe/director/produtor –, para definirem e controlarem
o rumo da produção artística de princípio a fim. A enorme
diferença de naturezas entre os dois modos de produção revela-se
no produto final – modos de produção diferentes dão origem a
produtos essencialmente diferentes (qualquer espectador não
especializado consegue detectar essa diferença em poucos minutos ou
segundos); a presença ou ausência da separação de poderes e
funções, ao articular de formas opostas o controle da produção,
embebe-se no produto final e determina uma parte do seu carácter.
Neste modo de produção, o caso mais frequente é
o de encontrarmos uma figura directora (o encenador, o coreógrafo, o
realizador, etc.) que tende a dirigir o esforço criativo e
experimental do resto da equipa. A predominância desta atitude
organizativa compreende-se, face ao modelo dominante de
comportamentos e organização do trabalho donde partem as pessoas
envolvidas – a cultura dominante enforma-as e impõe certos
métodos, relações e hierarquias de trabalho.
No entanto há casos em que – independentemente
do facto de existir uma ideia ou projecto inicial, de autoria
individual, que despoleta o processo – os membros do grupo de
trabalho confiam mutuamente nas ideias e na capacidade produtiva uns
dos outros e relaxam os cânones directivos de organização do
trabalho. Dá-se então um processo de experimentação e
desenvolvimento do trabalho que no final produz resultados
interessantes. Na verdade, é de esperar que quanto menos o processo
corresponda aos modelos dominantes de organização do trabalho, mais
fácil seja desaguar em resultados inovadores, por vezes inesperados
dos próprios participantes. Assinale-se que nada disto retira a
importância de uma figura «directora» em certos casos – nas
artes de palco e no cinema, por exemplo, a existência de um olhar
exterior ao palco, capaz de abarcar uma visão geral da cena e do
processo de trabalho, é da maior importância.
Segundo pude entender até hoje, alguns teóricos
portugueses (incluindo responsáveis pelo ensino da disciplina nas
escolas de cinema) tendem a definir o cinema de autor como aquele em
que o realizador controla em absoluto todo o processo: escrita de
argumento, guião, filmagem, montagem, etc. Julgo que esta ideia
resulta de um compreensão defeituosa acerca da natureza das artes
colectivas e pluridisciplinares (entre as quais avulta o teatro e o
cinema). E no entanto a própria indústria cinematográfica
reconhece e honra a natureza colectiva da produção cinematográfica,
tendo por regra incluir na ficha técnica todas as pessoas que
trabalharam no filme, desde o primeiro-assistente de realização até
ao tarefeiro que apenas trabalhou um dia como condutor para ir buscar
um actor ao aeroporto.
A produção colectiva não proletarizada – que
poderíamos designar independente, embora este termo também se tenha
tornado confuso na teoria e na crítica – não vive fora deste
mundo. Está também ela sujeita às regras dominantes de mercado,
que condicionam a sua divulgação, comercialização, etc. Apesar
disso é importante identificar esse momento fundamental – o
modo de produção – que marca definitivamente a diferença,
dando origem a um produto artístico de natureza distinta da produção
industrial/proletarizada.
[continua no artigo seguinte]
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