26/03/18

Como mulher ou com as mulheres?


 
Quanto mais frágil é o movimento social, o projecto político e a mobilização das populações em torno de um tema social, tanto maior o chinfrim, a zaragata tertuliana, o choque entre grupelhos e pessoas, por dá-cá-aquela-palha. Esta é uma regra segura para auscultar a saúde dos movimentos sociais.
 
Há dias assistimos a uma dessas chinelices: um enorme chinfrim nalgumas páginas de internet em torno duma «Oficina de Urbanismo Feminista» organizada por Mulheres na Arquitectura e anunciada assim: «As cidades, os bairros, as ruas são os próprios campos de trabalho, reflexão e proposição, também campos de batalha» e assim: «oficina destinada a pessoas que se identificam como mulheres». Como estamos na era do Facebook, é difícil saber se o que lemos representa mesmo o pensamento das autoras ou se resulta de desleixo ou inépcia na escrita. Por mim, parto do princípio que, ao escreverem «como mulheres», as autoras pretendem significar «com as mulheres» ou «com as causas das mulheres», visto que doutra forma se geram possíveis conotações sexistas e perpassa como que o apelo a um modelo passadista de mulher – ou, mais simplesmente: a um modelo identitário qualquer.
 
Não me estranha que alguém organize um convívio, uma reunião, um debate ou um seminário estritamente reservados a clientes habituais. Se os bares fazem isso, se os partidos fazem isso, se as ordens profissionais fazem isso, se o governo faz isso (a diplomacia secreta é uma instituição consagrada e tacitamente aceite pelos eleitores), por que carga d'água não poderiam fazê-lo as arquitectas feministas?

O Renato Teixeira, pelo contrário, atirou-se a elas com todas as suas unhas e dentes, acusando-as de femismo, fascismo, autoritarismo, etc., com uma desconcertante quantidade de raiva, que por sua vez deu azo a uma daquelas intermináveis conversas de chacha no Facebook. À partida seriam apenas duas opiniões em confronto, a dele e a delas, nada de mais. Mas, tratando-se do Facebook, logo os comentários tendem a perder o tino e a coisa descambou em invectivas bastante impróprias, como numa tasca à hora de fecho. Mas o que tem realmente piada nisto tudo é que algumas das acusações mais inflamadas contra o suposto femismo1 das autoras vêm duma pessoa que organiza regularmente grandes churrascadas só de carne, onde só têm entrada homens, porque isso de «comer carne grelhada alarvemente é coisa só de homens, as mulheres não entendem». Não sei que mulheres tem esse meu amigo conhecido (em sentido maior, não em sentido bíblico estrito) ao longo da sua vida, mas parece-me evidente que não foram muitas. Fui convidado uma vez para um desses eventos e à simples menção «só para homens», «as mulheres não entendem estas coisas», tive uma agonia tal, que não fui capaz de comer carne durante quase uma semana; despachei um «desculpem, esqueci-me duma coisa ao lume» e saí dali a correr.
 
Bem sei que contrapor publicamente uma história privada a um acontecimento público é bastante indelicado, mas a questão precisamente é essa: uma das características mais fortes da situação social das mulheres são os agravos que, «por delicadeza», ficam calados, reservados ao foro privado; nunca se fala deles em público, por mais que a sua realidade vivida oprima, menospreze e ofenda as mulheres.
 
Em contraste com esta palha que acabo de narrar, há um acontecimento realmente importante que passou de fininho ao lado das redes digitais, sem chinfrim nem zaragata, com honras de notícia na comunicação social dominante: as declarações do MDM, pela voz de Regina Marques, sobre a greve das mulheres em Espanha no dia 8 de Março de 2018. O MDM, que é um mero apêndice do PCP, acha que as mulheres espanholas «têm a suas razões para fazer isso, mas nós, em Portugal, não [...]. E porquê? Só metade das mulheres é que são trabalhadoras e têm de fazer greve por razões laborais e não por outras questões». Deixem-me resumir isto por etapas, em benefício do leitor desatento. O que o MDM nos tem a dizer é o seguinte:
 
1) Só metade das mulheres é que trabalham (?);
2) Logo, a lida doméstica não é trabalho (?);
3) Os únicos motivos legítimos para fazer greve são de ordem laboral (!);
4) Logo, a greve por motivos políticos é inaceitável (!).
 
Isto sim, é uma declaração fascistóide de alto gabarito e mereceria o maior chinfrim nas redes digitais; reproduz na íntegra vários mantras da cartilha salazarista. É, além disso, a prova acabada de que pelo menos algumas das dirigentes do MDM (e portanto o PCP) não fazem a mais pequena ideia de qual é a situação da mulher na nossa sociedade nem que transformações sociais é preciso propor. Estranho, além disso, que os restantes movimentos feministas portugueses não tenham ripostado com uma força pelo menos tão brutal como a daquelas declarações.
 
Mas há mais. Habilidosamente, Regina Marques reduz o acontecimento às mulheres espanholas. Sucede que as movimentações ocorridas em Espanha, apesar de terem aí um carácter específico e serem particularmente vigorosas, resultam da resposta a um chamamento internacional, em diversos casos com efeitos igualmente avassaladores, como sucedeu nalgumas cidades do Brasil e dos EUA. Não foi um «show-off» (como diz Regina Marques, de forma incrivelmente ofensiva) de nuestras hermanas. Foi um movimento mundial. Faltaram ao chamado os movimentos feministas portugueses e logo a comunicação social aproveitou para fazer de conta que não se tinha passado nada de especial, a não ser o picaresco de umas malucas aos gritos no país vizinho. Para que o recado não passasse despercebido, o PCP, pela voz do MDM, vem chamar a atenção: sim, são mesmo malucas e não podemos deixar passar isto em claro, porque elas atentam contra a natureza da Santa Greve, a quem nós ainda hoje de manhã rezámos três orações.
 
Para benefício do leitor português sujeito ao actual estrangulamento da informação, e para escarmento da comunicação social, do MDM e do PCP todos por junto2, deixo aqui alguns excertos duma entrevista a duas das mulheres que organizaram o apelo internacional à greve de mulheres de 8 de Março (ver: Sarah Jaffe, «As greves das mulheres recordam que são elas quem produz a maior parte da riqueza da sociedade», em conversa com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya; publicado originalmente em Truthout, 9/03/2018):

Cinzia Arruzza: As greves de mulheres não são uma novidade. Mas o facto de terem um impacte internacional tão grande, serem formalmente reconhecidas, construírem a identidade deste novo movimento feminista, isso sim, é novo. Há um precedente nos anos 1970: a greve das mulheres na Islândia, por salários iguais. E, há dois anos, o movimento feminista polaco decidiu recorrer a esta forma de luta e organizar uma greve das mulheres na Polónia contra a proibição do aborto. O mesmo sucedeu na Argentina, com vagas de greves e mobilizações de mulheres contra a violência de género.
A partir daí – e sobretudo do facto de essas mobilizações e greves terem alcançado um enorme sucesso na Argentina e na Polónia – nasceu a ideia de organizar uma greve internacional das mulheres no 8 de Março. As greves de mulheres [...] tornam visível não só as coisas que vitimam as mulheres, mas também o seu enorme poder potencial, porque são trabalhadoras, ao mesmo tempo no mercado de trabalho formal e na esfera social reprodutiva, em casa, etc. Assim, o facto de as mulheres poderem fazer greve na sua qualidade de mulheres torna evidente o trabalho que elas realizam, […]
Tithi Bhattacharya: Mesmo no ano passado, quando a greve foi anunciada, o termo “greve” foi em certa medida reprimido, por ser considerado uma interrupção do trabalho no local de produção. O emprego do termo “greve” para qualificar este momento da luta das mulheres é extremamente importante, confere-lhes uma enorme força […]
Penso que uma das coisas que achámos fácil de formular no contexto do ano passado, bem como neste ano, é a diferença entre uma greve no local de trabalho e uma greve política. Creio que a greve das mulheres deu uma contribuição muito importante para a história da greve política, em particular no contexto neoliberal de declínio da sindicalização no mundo inteiro. [...]
 
Fico-me por aqui, para não abusar da vossa paciência, mas aconselho a leitura integral deste artigo.
 
Gostava ainda de chamar a atenção para a enorme frustração provocada por organizações como o MDM – e talvez também outras organizações portuguesas que foram incapazes de compreender a importância do que estava em causa, não só para as mulheres, mas para a toda a humanidade sujeita à difícil luta contra o neoliberalismo. Na minha opinião, não se trata apenas incompreensão, mas sobretudo de um enorme medo, manifestado por quase todas as organizações políticas portuguesas desde 1974, de que a população tome o freio nos dentes e as deixe para trás – que as despeje no caixote do lixo da História. Estas organizações não se limitam a manter-se imóveis, em vez de partirem para a acção no campo social – elas frustram, acorrentam e reprimem activamente, o mais que podem, os movimentos sociais. Conheço de cor as desculpas apresentadas em privado por dirigentes dessas organizações de esquerda, quando são chamados (eles ou elas) a justificar a recusa de mobilização: «o povo não está preparado para ouvir essas propostas». É claro que este argumento, sendo puramente especulativo (pois carece de prova) e não pouco salazarista, pode ser virado do avesso; posso ripostar com igual legitimidade: «o povo [seja lá isso o que for] não só está preparado para ouvir essas propostas, como está desesperado por que lhas apresentem». A recusa terminante de arriscar seja o que for – pois toda a proposta política comporta um risco potencial de fracasso – é o argumento de quem, no fundo, não quer tocar num cabelo do establishment e gasta tanto tempo a contar votos como o Tio Patinhas a contar patacos.

(corrigido em 26/03/2018)

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Notas
 
1 A invenção do neologismo «femismo» é, em si mesma, um hino ao sexismo. Os homens maus são machistas; as mulheres más são femistas – juizinho e nada de misturas, hã?
 
2 O facto de eu estar aqui a chamar fascistóide à atitude do MDM para com a greve em geral e as mulheres espanholas em particular não significa que eu estenda essas considerações a toda a vida política do PCP. Felizmente ainda não me tornei assim tão básico (será por não cultivar o Facebook?).
 

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