13/02/18

Novo anedotário neoliberal (1)

todos os dias em horário nobre, num televisor perto de si


Está em curso uma nova campanha que visa demonstrar a necessidade de reduzir os direitos de quem trabalha e emagrecer (ou «flexibilizar», como se diz por aí) a legislação laboral. Os temas centrais desta campanha são: 1) a automação, modernização e robotização do trabalho; 2) a concorrência no mercado internacional. Não é certamente por acaso que os noticiários, debates televisivos e tribunas de opinião, congressos, encontros mundiais, conferências, insistem obsessivamente em trazer à baila, a propósito de tudo e de nada, esses temas. Trata-se obviamente de uma campanha bem orquestrada, com ramificações jornalísticas, académicas e políticas. O seu objectivo é justificar a precarização do trabalho e desmantelar as protecções e os direitos dos trabalhadores.
 
Abordarei os dois temas em vários artigos, começando pela robotização.

1. A robotização do trabalho

Para abreviar razões, digamos que todos os argumentos propostos sob este tema se resumem nisto: os avanços tecnológicos, em particular a introdução de robôs no desempenho de tarefas produtivas, tornam o desemprego em massa inevitável.
 
Imaginemos uma oficina cuja produção assenta em 4 máquinas fotocopiadoras. Ao lado de cada máquina encontramos um posto de trabalho. Cada um dos 4 trabalhadores passa 8 horas diárias da sua vida alimentando a fotocopiadora com os originais a copiar, folha a folha. Este estado de coisas corre beatificamente a contento de todos durante anos a fio, até que um dia entra pela porta um vendedor ambulante que se dirige ao patrão e lhe propõe o seguinte: olhe, você tem 4 máquinas, que têm de ser alimentadas por 4 trabalhadores, folha a folha; proponho-lhe que troque tudo isso por esta máquina, mais rápida que as suas 4 máquinas juntas, inteligente e automática; dá-se-lhe uma resma de originais e ela encarrega-se de se alimentar a si própria. O gestor aceita a proposta, vende as máquinas velhas a uma oficina congénere das Filipinas (onde a mão-de-obra é mais barata e por isso não é preciso investir tanto em tecnologia avançada), despede 3 dos 4 trabalhadores e adopta a nova máquina, daí tirando acrescidos lucros e aumentada produção. Em suma, o resultado final deste processo de modernização é que o patrão ficou a ganhar e os trabalhadores ficaram a perder; eventualmente (mas não é garantido) o consumidor poupou algum dinheiro. Mesmo o trabalhador que teve a sorte de não ser despedido já não trabalha a tempo inteiro: labora apenas meio dia e ganha metade do salário, porque entra ao serviço de manhã, escolhe a resma de originais a copiar, coloca-a no tabuleiro da máquina e a seguir pode vestir o fato de banho e ir para a praia. Esta história, que não será estranha à experiência de muitos dos meus leitores, exemplifica aquilo que a propaganda neoliberal classifica de «transformação inevitável do mercado de trabalho» (o chamado argumento TINA, There Is No Alternative)
 
Só há um pequeno problema nesta história: ela está mal contada; não chegou ao fim. É como quando uma pessoa começa a contar uma anedota e estanca a meio – «oh, esqueci-me do resto da história, desculpem lá». Eis o que falta contar: a fotocopiadora automática não caiu do céu. Nem o patrão chegou um dia à oficina dizendo: ó Chico, pega numa enxada e anda daí, vamos cavar um terreno que eu tenho ali adiante. O Chico começa a cavar e pimba, a certa altura a folha da enxada ressoa contra qualquer coisa dura, vai-se a ver o que é e … heureca!, achámos uma fotocopiadora inteligente!
 
Lastimo informar que a coisa não se passa assim. No mundo real é preciso ir ao mercado comprar a máquina. E como chegou ela às mãos do vendedor? Graças a uma enxada num terreno baldio, à cata de trufas? Também não. Alguém teve de fabricá-la. Como se trata de uma máquina muito sofisticada, integrando meios altamente tecnológicos, circuitos impressos, programação avançada, etc., para a sua conclusão foram necessários muitos materiais primários (metais, plásticos, compostos sofisticados, etc.), muitos circuitos impressos, muitos estudos, durante muitos anos – em muitas unidades de investigação tecnológica –, enfim, um sem-número de elementos produtivos vindos dos mais variados sectores e das mais longínquas partes do mundo. Ora, para que tudo isto aconteça, foi preciso criar novas unidades de produção, novos centros de investigação, abrir novas minas para obter os novos minérios de que se compõem os novos elementos da máquina – enfim, criar postos de trabalho numa variedade tão vasta de ramos de produção, que se torna difícil seguir a sua pista de cabo a rabo. Por conseguinte, numa primeira aproximação ao fenómeno da modernização e robotização, o que nós temos, olhando globalmente para a coisa, não é uma perda de postos de trabalho, mas sim uma transumância: os postos de trabalho tiveram de demandar novas pastagens (assunto que levanta novas questões, das quais falaremos noutra ocasião). Sabe-se lá se tudo isto não terá mesmo provocado um acréscimo de postos de trabalho! Ou terão diminuído? Adiante.
 
O argumento seguinte do neoliberal de serviço será este: está bem, olhemos para o fenómeno do mercado de trabalho na sua totalidade e não apenas caso a caso, mas o facto é que no total, como todas as indústrias se modernizaram, existe uma redução global dos postos de trabalho – não pode haver emprego para todos. Mais uma vez esbarramos num pequeno senão: os factos invocados não são, até à data, factos coisíssima nenhuma! Continuo à espera que me apresentem um estudo quantificado, historicamente documentado, que demonstre factualmente que o processo de modernização acarreta uma perda global de postos de trabalho. Encontramos aqui uma constante: o argumentário neoliberal não se baseia no estudo sério e científico da realidade, mas sim numa fé cega e em anedotas avulsas e mal contadas.
 
Se o argumento neoliberal colhesse, isso quereria dizer que pelo menos desde o século 18, nas sociedades industrializadas, os postos de trabalho não teriam parado de minguar (sim, espantem!, o progresso tecnológico e a mecanização afinal não são apenas coisa de hoje, nem sequer de ontem!). Por esta altura já deveríamos estar reduzidos a 347 postos de trabalho em todo o mundo! Ora, não parece que tenha sido essa a consequência da modernização da produção.

Já vimos que a modernização dos processos produtivos implica mudanças, mas não a diminuição do trabalho (pelo menos de forma demonstrada) – o mundo do trabalho não constitui uma excepção divina às leis mecânicas do universo: não existe um perpetuum mobile que permita produzir sem trabalho humano. Chegou agora o momento de olharmos com seriedade para além das anedotas neoliberais e indagarmos o essencial: as actuais ou futuras transformações do processo produtivo implicam uma alteração das relações de trabalho? Por outras palavras: no processo produtivo, tal como o conhecemos, existe um trabalhador – o qual dedica uma enorme quantidade da sua energia e do seu tempo de vida à produção de bens ou serviços – e existe um capitalista que se apropria desse produto e duma parte do seu valor e os mete ao bolso. A partir desta relação germinal entre Trabalho e Capital nascem todas as outras: mercado de trabalho, emprego, negociação colectiva, direitos dos assalariados, organizações de classe, diversos traços culturais … um sem-fim de coisas, todas elas decorrentes duma raiz comum: as relações entre Trabalho e Capital ao nível das unidades de produção (e não ao nível do éter ou das abstracções neoliberais).
 
A robotização das unidades produtivas muda de alguma maneira a relação germinal entre Trabalho e Capital? Que grandes transformações são essas? Os trabalhadores passam a trabalhar com os pés colados ao tecto e a cabeça para baixo, comandados por uma nuvem de anjos vindos do céu, enquanto os patrões baixam aos infernos e são assados num espeto? Se assim for, se as relações fundamentais da nossa sociedade sofrerem tão cabais transformações por obra e graça de um robô, façam favor de demonstrar. Senão, direi o seguinte: enquanto o essencial não mudar, enquanto nos acharmos no domínio das relações capitalistas, não existe o mínimo motivo para emagrecermos os direitos do Trabalho e a legislação laboral. Pelo contrário, quanto mais sofisticados são os meios de produção, tanto mais poderosos serão os meios de controlo da produção por parte do patronato – e portanto mais razões haverá para reforçar as precauções e os direitos dos trabalhadores!


A conclusão a que nos leva a análise do anedotário neoliberal não é a «flexibilização» do trabalho, é o seu inverso, ou seja, a necessidade de reforçar a protecção e as garantias dos trabalhadores. Aliás, se olharmos para os últimos 200 anos de indústria e relações capitalistas, o que vemos nós? Que o progresso industrioso e tecnológico foi acompanhado por um reforço contínuo das garantias dos trabalhadores; que da contratação à jorna, passámos para as relações contratuais estáveis; que coisas tão abjectas como a exploração do trabalho infantil foram proibidas; que da jornada de trabalho de 12 a 14 horas, sem férias, com frequentes mortes por exaustão em idade jovem no local de trabalho, passámos para jornadas de 6 a 8 horas, com respeito por períodos mínimos de descanso; etc. O progresso não pôde ser feito apenas do lado das máquinas, teve de incluir quem trabalha; as vantagens não couberam todas ao patronato, uma parte teve de ser repartida com os assalariados. E foi assim o progresso até aos anos 1980, quando entrou em cena o neoliberalismo. Temos pois de concluir que as propostas neoliberais são uma ameaça ao progresso, por mais robôs que aí venham; e que a única forma segura de avançar pelas belas sendas abertas à produção pelas novas tecnologias passa pelo reforço dos direitos e garantias do Trabalho, e não o inverso. 

(corrigido em 21-02-2018)
 
  

Sem comentários:

Enviar um comentário