12/04/16

O Novo Estado


Um dos factores que caracteriza a passagem do Ancien Régime para a República é a separação de poderes dentro do Estado e entre o Estado e a Igreja. Chamemos a esta separação «Estado laico de direito». 

A expressão «laico» significa que o Estado deixou de partilhar o poder com a Igreja ou de subordinar-se ao império da Igreja.
A expressão «de direito» significa que nada na sociedade em questão está acima das leis, nem sequer o próprio legislador. Significa também que existe um conjunto de garantias que protegem os indivíduos e as entidades colectivas dessa sociedade.

Face à evolução dos acontecimentos políticos nas últimas 3 décadas, é aconselhável perguntar:
  1. a separação de poderes continua em vigor?; 
  2. o Estado permanece imune à subjugação ou partilha de poder com alguma forma, clássica ou reinventada, de igreja ou de crença organizada?; 
  3. as garantias individuais e colectivas continuam em vigor? 
Se a resposta a todas as 3 perguntas for afirmativa (todas elas são condições necessárias), podemos concluir que atravessamos apenas um «mau passo», uma fase do «Estado democrático de direito» em que todos os seus vícios e defeitos de nascença se encontram particularmente assanhados. Mas se alguma delas merecer resposta negativa, temos concluir que vivemos um processo de transformação profunda do regime político. Esclareço desde já que a primeira opção (resposta afirmativa às 3 perguntas) é a defendida pela generalidade das correntes de esquerda. Afirmam elas (e com razão, a meu ver) que as contradições internas e a natureza do Estado democrático de direito sempre tiveram aspectos em que a resposta àquelas 3 perguntas é variável; concluem elas (mal, a meu ver) que nada mudou. Assim, por exemplo: a justiça nunca foi rigorosamente igual para ricos e pobres, quanto mais não seja porque os ricos dispõem de melhores meios para se defenderem em tribunal; o aparelho de Estado sempre foi directa ou indirectamente subserviente aos interesses do capital; o Estado afirma-se laico mas atribui subsídios e benesses às igrejas, a umas mais do que a outras; etc.
Não tenho resposta definitiva para estas questões; limito-me a fazer perguntas e apontar algumas vias de reflexão; mas seria desonesto da minha parte não dizer que me inclino para a tese de que a resposta àquelas 3 perguntas é negativa, no todo ou em parte, e que vivemos uma fase de transição de regime.
Sejamos claros: quando digo regime, refiro-me exclusivamente à organização do exercício do poder, não ao sistema capitalista.


O sumo pontífice Mario Draghi integra o Conselho de Estado português

Como é do conhecimento geral, Mario Draghi, actual governador do Banco Central Europeu (BCE), foi convidado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a participar no primeiro Conselho de Estado convocado neste mandato presidencial. A comunicação social noticiou o acontecimento e fez eco de algumas perplexidades e indignações a esse respeito.

Sejamos claros e directos: o pessoal da comunicação social não é inteiramente estúpido e ignorante. Tem de saber que Mario Draghi não é um simples burocrata encarregado do governo do BCE – ele é, acima de tudo, um dos directores do BIS, organização que reúne a maioria da banca mundial, via bancos centrais, e que determina as regras internas da banca (à margem e até à revelia dos Estados); não é um simples doutorado em finanças pela Universidade de Roma, é um dos sumos pontífices da banca mundial; é filho de um banqueiro, respira finança em vez de ar desde que nasceu; foi vice-presidente do Goldman-Sachs e governador do banco central italiano; na qualidade de director do BIS, é cúmplice e co-autor das regras de Basileia (regras da banca ditadas pela banca) e do modo de relacionamento da banca com os Estados – uma relação que pressupõe o poder da banca em pé de igualdade com todos os Estados juntos. A sua presença no Conselho de Estado português equivale à presença de um núncio papal junto da coroa de um reino medieval com independência nominal.
A comunicação social opta por obliterar alguns destes factos, mas noticia outros por dois motivos: 1) não seria possível fazer passar despercebida a participação de Mario Draghi no Conselho de Estado português; portanto mais vale tomar a iniciativa e noticiar o facto de uma certa maneira; 2) se alguém quiser apresentar aos seus amigos um assassino traficante de armas e negreiro, parvo será se o apresentar como tal; apresentá-lo-á como excelente chefe de família, pai amoroso e senhor de grande perícia profissional, silenciando o resto. 
 
A presença de Mario Draghi no Conselho de Estado a convite de um presidente como Marcelo Rebelo de Sousa, tão conhecedor das regras da diplomacia, do protocolo de Estado e dos mecanismos de partilha do poder, sobre os quais até escreveu vários artigos numa enciclopédia de extrema direita (enciclopédia Polis, ed. Verbo), não pode ser encarada como um deslize, um lapso inocente. Tem de ser vista como uma chamada intencional objectiva (longe de mim fazer julgamentos de intenção) do núncio de Basileia à partilha do poder, com honras de Estado. A questão fulcral é que o Presidente português poderia ter-se reunido a título privado com o governador do BCE para trocar impressões ou pedir conselho, sem causar estranheza – todos sabem que Marcelo Rebelo de Sousa defende a banca, tem amigos íntimos na banca, coloca os interesses da banca acima de todos os outros. Por isso mesmo, por se tratar de Rebelo de Sousa (e não de um burro em pé como Cavaco Silva), a convocação de Mario Draghi é particularmente significativa – demonstra, no meu entendimento, a assunção oficial da partilha do poder com um núncio do poder financeiro mundial.

A fé no mercado e a fusão entre Banca e Estado

Inúmeros autores referem que uma das características do nosso tempo é a substituição das formas clássicas de religião pela fé no «mercado». A nova religião assenta numa série de crenças, onde se destaca a ideia de que o Mundo é um cubo sustentado sobre um alicerce chamado «mercado» e que no âmago desse alicerce existe uma entidade todo-poderosa chamada «bancos sistémicos». Segundo a ortodoxia vigente, a falência dessa entidade arrastaria toda a sociedade para as chamas do inferno. As imagens convocadas a partir desta ideia configuram um horror semelhante às representações pictóricas medievais: um estado permanente de penas e sofrimentos, de chamas eternas onde arderiam carnes e bens, de almas sujeitas à fome e ao caos. Esta crendice não encontra qualquer correspondência com a realidade material; a ideia de que a queda de um banco sistémico pode provocar o descalabro social é um absurdo (ver «Que Guardam os Bancos?» para esclarecer o sentido destas minhas afirmações). 

O problema, porém, é que uma sociedade gerida pela fé não se guia pela razão iluminada; guia-se pela crendice; e esta, por sua vez, tem como regra fundamental não atender ao absurdo das suas próprias afirmações – o pensamento religioso substitui a noção de absurdo pela noção de heterodoxia. Para a igreja é inaceitável não o que for desconforme à razão e à ciência, mas sim o que for contrário aos dogmas da fé. 

A evidência com que se passou do discurso humanista, social e dos direitos humanos universais para a sujeição à fé nos mercados e na finança é tão intensa, que me parece poder dispensar demonstrações neste breve artigo. Sublinharei apenas que estamos perante uma situação em que o poder instituído e toda a organização do Estado (na plena acepção da palavra, visto tratar-se duma situação que conta com a aprovação geral da população) abandona a razão iluminada para se submeter à fé e (a meu ver) se reconfigurar para execução das novas ordens emanadas do poder financeiro mundial.

O endividamento público

Sempre houve endividamento público, desde os tempos de Nabucodonosor. Nada de novo desse lado. Mas que o Estado moderno abandone as estratégias clássicas de endividamento para se lançar numa cruzada repleta de sacrifícios impostos à população – sacrifícios no sentido religioso da palavra, como procuro explicar em «Que Guardam os Bancos?» –, parece-me apontar para uma mudança qualitativa de regime.

O secretismo de acordos que alteram o regime

Que o Estado celebre acordos secretos sem passar cartão às populações, não é novidade, foi o pão-nosso-de-cada-dia ao longo de séculos, incluindo toda a época do Estado laico de direito. Mas que esses acordos subvertam inteiramente a natureza e a organização do próprio Estado sem que as populações tenham ocasião de pronunciar-se directamente e em condições de fazer um bom julgamento, isso parece-me algo digno de nota. Assim sucede com os acordos de «livre comércio» (TTIP, CETA, etc.). Assim sucede com os acordos de endividamento do Estado português, que, embora sejam acordos de alto nível (isto é, entre Estados e entre Estados e a finança mundial) e impliquem alterações importantes às leis fundamentais, às cartas de direitos, à organização do Estado (funções do Estado e Estado Social), nunca foram sequer traduzidos para português e dados a conhecer à população.

Em suma, tendo a crer que estamos perante alterações significativas da natureza do regime e do Estado. Não são elas evidentes quanto baste, porque o discurso oficial vai num sentido, enquanto o seu programa ruma em sentido oposto. Mas que a esquerda em geral se deixe enganar por essa divergência de sentidos, parece-me ortodoxia a mais, coisa de seita vencida. Esperemos pois que esteja eu enganado e que não corramos o risco de acordarmos amanhã numa situação que se torne tão tristemente famosa na História como a que vivemos na primeira metade do século XX.

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