O fetichismo da mercadoria
Crítica da edição com prefácio de Anselm Jappe, ed. Antígona, 2015
Com
o título «O Fetichismo da Mercadoria e o Seu Segredo», a
editora Antígona publicou uma colectânea de textos extraídos de O Capital, de
Karl Marx. A edição data de 2015,
com um artigo introdutório de Anselm Jappe; os textos são traduzidos directamente do
alemão por José Miranda Justo.
Infelizmente a
edição parece-me um
desastre, por razões
que explicarei adiante; digo isto
com particular desgosto, por ser
a Antígona uma editora que
muito prezo, exemplo invulgar
de resistência contra ventos e marés.
O livro inclui o artigo introdutório de Anselm Jappe, seguido de dois trechos do livro I d'O Capital: capítulo 1, secção 4 («O carácter de fetiche da mercadoria e o seu segredo»), e capítulo 2 («O processo de troca»).
Antes de indicar
as fraquezas que
encontro nesta
edição, tenho de informar o leitor de que nem
sou especialista em Marx, nem quero ser – na mesma medida em
que não quero ser especialista em coisa alguma em particular, nem
fazer uma das figuras que mais detesto
na sociedade capitalista:
a do perito sem o qual nada seria compreensível, factível ou
produtivo –, e portanto não vou entrar em minúcias
sobre o trabalho de Marx. Limito-me
a levantar questões visíveis ao
olho nu de
qualquer mortal.
O tema do livro
diz respeito a uma das teses de Karl Marx sobre a sociedade
capitalista: o mistério da
mercadoria e
o seu carácter fetichista1.
É, julgo eu,
uma tese central para
uma
compreensão alargada e
vívida da nossa sociedade.
O editor,
consciente da importância do
tema, bem como do seu
desenvolvimento tardio e
escasso no pensamento
contemporâneo, encomendou uma introdução a um dos filósofos
vivos que
mais se tem dedicado ao seu
estudo: Anselm
Jappe. O artigo de Jappe, com o título «O que é o fetichismo da mercadoria? E pode acabar-se com ele?»,
ocupa 25 páginas, de
modo que o seu peso
no total das 83 páginas de texto (quase um terço do livro) é
evidente.
O desastre desta
edição começa logo aí.
Anselm Jappe parece querer
desenvolver
um pouco do seu próprio pensamento a propósito do tema introduzido
por Karl Marx, mas afinal nem
vai longe nem ajuda o leitor a compreender uma só linha dos
textos
de Marx. O problema de fundo
deste prefácio – já
para não falar em
aspectos marginais, como sejam as abismais elipses lógicas de
Jappe – é o
seguinte: ou o leitor já conhece de cor e salteado a obra de Marx, e
nesse caso entende as constantes referências do
prefaciador a conceitos
basilares do marxismo; ou o leitor pouco ou nada conhece da crítica
marxista, e nesse caso o artigo de Jappe assume a seus olhos um
aspecto cabalístico de
seita, desmoralizando a
inteligência e a
curiosidade.
Para bem medirmos
a dimensão do absurdo do artigo introdutório de Jappe, recordemos
que os textos de Marx transcritos na edição da Antígona são
integralmente colhidos de O Capital.
Isto significa que, se o leitor já conhece a obra de Marx, então
pode compreender o artigo introdutório, mas em contrapartida não
precisa para nada desta edição, porque certamente já tem os
respectivos textos
na sua estante! Por outro
lado, se a ideia da editora era,
em atenção aos neófitos, mostrar
um aspecto importante das
teses de Marx que raramente é mencionado,
o caminho mais
útil para uma introdução seria a contextualização e a explicação sumária dos
conceitos marxistas basilares que sustentam a
ideia de «fetichismo da mercadoria».
Esta ideia é exposta n’O
Capital após
uma trintena de páginas onde já foram
abordados,
discutidos
e definidos
com rigor os
conceitos de mercadoria, de
valor de uso, de
valor de troca, a noção de
trabalho incorporado
na mercadoria, de trabalho concreto, de trabalho abstracto, … Em
vez de fornecer essa ajuda
contextualizadora ao leitor, de lhe mostrar o lugar de cada alicerce,
Jappe salta para a pista e
atira os malabares ao ar,
mostrando-nos
que é um ás do circo
marxista, sem adiantar
explicações
sobre a natureza dos
malabares. Puro
exibicionismo.
Ultrapassado
o prefácio, deparamo-nos com o segundo desaire:
a tradução. Estamos perante
um pequeno livro que, se fosse bem escrito e traduzido, não
consumiria mais de uma breve tarde de leitura. As páginas
são
bastante pequenas (não mais
de 1200 caracteres por página). No
entanto, cada página pode
consumir
mais de 20 minutos de
leitura, se quisermos
autenticamente
compreender o que estamos a ler. Cada frase tem de ser lida
e relida
diversas
vezes, e ainda
assim sem garantia de bom
sucesso. Ao cabo de meia dúzia de páginas laboriosamente
lidas e duvidosamente
decifradas, a evidência
impõe-se: mais vale aceder à Internet e descarregar – ainda
por cima à borla! – uma
versão decente
dos mesmos textos e ler
fluentemente, sem grandes dificuldades
nem tropeços, o que na tradução publicada pela Antígona parece um
indecifrável texto transmitido
em código para exclusivo
benefício de
um espião do outro lado do mundo.
O problema das
traduções, de qualquer tradução, é que quando o tradutor não
entende o que está a traduzir, o resultado é fatalmente
incompreensível para
o leitor. Vejamos
como e porquê isto
sucede.
A
escrita é, à partida,
um exercício de imaginação: o autor figura mentalmente
uma certa coisa, uma
res alis, uma
imagem da realidade que
pretende
transmitir ao
resto da humanidade, e depois
procura
a fórmula adequada para
codificar essa figura em
escrita. O acto da
escrita, por seu turno,
consiste essencialmente em transpor
para uma forma de pensamento linear – obediente a
um conjunto de regras e convenções –
uma figuração que à
partida era mais complexa e
multidimensional.
O leitor, por sua vez, tem de percorrer
o caminho inverso: descodificar
a escrita linear,
segundo as referidas regras e
convenções, de modo a
tentar reconstruir
a figuração complexa e multidimensional que estava na mente
do autor – é uma espécie
de exercício de adivinhação a partir de indícios ordenados,
sucedendo
que nem sempre a imaginação do autor e a do leitor coincidem,
embora no caso das artes, que
é um caso particular de comunicação,
isso não tenha
necessariamente grande
importância.2
A situação do
tradutor eleva ao quadrado este processo, pois a tradução parte
de um exercício de leitura,
para chegar a um exercício
de reescrita. O tradutor, tal
como o leitor, tem de
decifrar o texto original; tem
de reconstituir
na sua mente a figuração original. Em
certos tipos de texto, a reconstituição
fiel da figuração
multidimensional inicial
toma o nome de «compreensão».
A
seguir o tradutor tem
de reiniciar um processo
idêntico ao original: a partir duma figuração inicial (neste caso
emprestada pelo autor),
retoma
o exercício da
escrita, mas desta vez numa
nova língua. Resumindo:
o que está em causa numa
tradução são
essencialmente duas coisas (ou uma coisa nas suas duas variantes,
para ser mais rigoroso):
imaginação e compreensão. Depois, acessoriamente, vem o domínio
das regras e convenções da
escrita linear.
O problema da
tradução em análise é que, manifestamente, o tradutor não
compreendeu o que estava a ler; não foi
capaz de recriar na sua imaginação o que Karl Marx figurava
ao escrever; de
modo que, jogando pelo seguro
dentro dos limites do
seu desnorte, o tradutor procurou
talvez transpor
para a língua portuguesa, com
grande
zelo, as palavras alemãs que
encontrou
no original (suponho eu, que
não sei uma palavra de alemão).
Este procedimento
não oferece quaisquer garantias de reprodução da intenção do
autor, porque falha o elemento fundamental de toda a tradução:
imaginação e compreensão.
Ora a
ausência de imaginação num
texto só pode ter dois
resultados: ou o lugar-comum ou
o
vazio. No caso vertente,
encontramos um vazio: as
palavras soltas, organizadas
em fila unidimensional
mas desligadas de um processo
compreensivo,
resultam num objecto vago. Daí que o leitor seja obrigado a reler
uma, duas, três, n
vezes cada frase, à procura do significado supostamente
escondido por
detrás de
um lugar vazio.
Exemplo 1
(ligeiro):
Trad. JMJ (José Miranda Justo):
«O carácter místico da mercadoria não nasce, portanto, do respectivo valor de uso. E tão-pouco nasce do conteúdo das determinações do valor. Pois que, em primeiro lugar, por diversos que possam ser os trabalhos proveitosos ou as actividades produtivas, é uma verdade fisiológica que são funções do organismo humano e que cada uma de tais funções, seja qual for o seu conteúdo e a sua forma, é essencialmente dispêndio de cérebro, de nervos, de músculos, de órgãos sensoriais, etc., humanos.»
Trad. minha ad hoc, a partir do inglês e do francês3:
«O carácter místico das mercadorias não resulta, portanto, do seu valor de uso. Tão-pouco resulta dos factores que determinam o valor [de troca]. Com efeito, em primeiro lugar, por mais variados que sejam os trabalhos úteis ou as actividades produtivas, é um facto fisiológico que todos eles são uma função do organismo humano, e que esse tipo de função, seja qual for a sua natureza e a sua forma, consiste essencialmente num dispêndio [de energia] do cérebro, dos nervos, dos músculos, dos órgãos sensoriais, etc.»
Exemplo 2 (pesado):
Trad. JMJ:
«[…] A igualdade dos trabalhos humanos obtém a forma objectiva da igual objectividade de valor dos produtos do trabalho, a medida do dispêndio de força humana de trabalho obtém, pela sua duração, a forma da magnitude de valor dos produtos do trabalho, e, por último, as relações dos produtores, nas quais são postas em prática aquelas determinações sociais dos trabalhos deles, obtêm a forma de uma relação social dos produtos do trabalho.
O misterioso da forma de mercadoria consiste, pois, simplesmente em que ela reflecte para os homens os caracteres sociais do próprio trabalho deles enquanto caracteres objectivos dos próprios produtos do trabalho, enquanto propriedades naturais sociais destas coisas, e, por isso, também a relação social dos produtores com o trabalho total enquanto relação social existente fora deles enquanto objectos.»
Trad. minha ad hoc, a partir de id. ibid.:
«[…] A equivalência de todos os tipos de labor humano assume a forma de valor do produto do trabalho; a medição da duração da força de trabalho despendida assume a forma de quantidade de valor dos produtos do trabalho; e por fim as relações mútuas entre produtores, através das quais se afirma o carácter social do seu trabalho, assumem a forma de relação social entre produtos do trabalho.
A mercadoria torna-se por isso uma coisa misteriosa, simplesmente porque na mercadoria o carácter social do labor humano manifesta-se a quem a produz como um dado objectivo que reveste o produto do seu labor; a relação dos produtores com o somatório total do seu labor é-lhes apresentada como uma relação social entre os produtos do seu trabalho, e não como uma relação entre os próprios produtores.»
[Nota 1: A dificuldade generalizada de entender e traduzir os escritos alemães de Karl Marx é evidente nas múltiplas traduções e versões que consultei, cujas diferenças chegam a fazer duvidar que todas provenham de fonte comum. Eu tão-pouco ponho as mãos no fogo pela minha tradução apressada, apesar de estar a usar uma versão inglesa revista por Frederick Engels.
Nota 2: A tradução de JMJ replica em abundância os mesmos erros duma tradução brasileira colectiva não assinada, disponível nos arquivos marxistas on-line.
Nota 3: Por regra, as traduções em línguas portuguesas disponíveis na rede digital são tão disparatadas, que dá vontade de chorar.]
Para não cortar a meio o raciocínio de Marx,
deixando o meu leitor em suspenso, acrescento o seguinte
esclarecimento fornecido por Marx no mesmo texto: «É por isso que
os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais cujas
qualidades são ao mesmo tempo perceptíveis e imperceptíveis. Da
mesma forma, a luz de um objecto é percebida por nós não como uma
excitação subjectiva do nervo óptico, mas sim como a forma
perceptível de um objecto externo. Existe aí uma relação física
entre duas coisas. Com as mercadorias passa-se algo diferente. Aí, a
forma de valor e a relação de valor entre produtos do trabalho,
graças à qual adquirem a qualidade de mercadorias, não tem
qualquer relação com as suas propriedades físicas nem com as
relações materiais que delas resultam» [trad. minha ad hoc,
a partir de id. ibid.]. Esta
passagem4
ajuda a esclarecer o pensamento de Marx, mas ao mesmo tempo denuncia
a época histórica e
filosófica em que foi
concebida:
a «forma objectiva de um
objecto externo», neste
contexto, significa hoje para nós a
«representação mental de um objecto externo», tornando-se
assim claros os mecanismos
graças aos quais pode instalar-se, de forma aparentemente tão
fácil, a alienação entre os produtores, o
produto do seu trabalho e
o valor mercantil. De
facto, no exemplo dado por Marx, a natureza da luz, das células
fotossensíveis e do nervo óptico nada tem a ver quer com a
natureza do objecto exterior
quer com a natureza da
representação mnemónica e
conceptual desse objecto; a representação mental da mesa não é
uma réplica, não é uma
mesinha
em miniatura, e tanto a luz como os aparelhos perceptivos funcionam
como instrumentos intermediários, favorecendo por isso mesmo, em
certos casos, a alienação
entre os objectos e a sua representação mental.
Regressando ao
livro e resumindo:
estamos perante uma tradução desastrosa. Se somarmos a isto o facto
de Marx (na minha humilde opinião), quando escreve em alemão, se
exprimir amiúde de
forma desnecessariamente retorcida – e
até, não poucas vezes, algo
trapalhona, como se pode notar nalguns
dos
originais aqui traduzidos –,
temos um prato de esparguete
em que dificilmente se encontra a ponta da meada.
Esta
edição é um passo
infeliz, em que a Antígona, apesar das suas evidentes boas
intenções, presta um mau serviço, pois
o livro não só não seduz nem é inteligível, como assusta a
curiosidade do leitor sobre o trabalho teórico de uma das mentes
mais brilhantes dos últimos
dois séculos.
Notas:
1Uma
breve nota sobre fetichismo, para ajudar o leitor desprevenido. O
termo fetichismo é uma corruptela da palavra portuguesa
«feitiço» e foi adoptado pela Europa erudita a partir do século XVIII.
Etimologicamente, remete para algo fictício → artificial →
sortilégio. Na sua acepção actual designa uma espécie de
animismo: a sobreposição de um espírito fictício, com poderes ou
carácter sobrenaturais, à natureza intrínseca dum objecto (caso duma
máscara «contendo» a alma dum antepassado, e que por isso deixa
de ser vista como máscara), ou a substituição duma pessoa por um
objecto (caso do fetichismo sexual e da cruz católica, e neste caso
os objectos inanimados passam a representar pessoas e relações sociais e a ser vistos como seres providos de ânimo). Marx
serve-se deste conceito para designar a substituição das relações
entre produtores pelas relações entre mercadorias, imbuídas
duma natureza pseudo-anímica, chamada «valor», que aparece como
se fosse uma relação social autónoma e com vida própria.
2Esta
explicação é uma versão condensada e simplificada do problema
das linguagens dimensionalmente reduzidas. Explicação mais clara
(mas muito mais longa e detalhada) é-nos dada por Vilém Flusser em
grande parte da sua obra.
3Versão
inglesa de O Capital, livro I, tradução de Samuel Moore e
Edward Eveling, editada por Frederick Engels; 1ª ed. 1887
(publicada por Progress Publishers, Moscovo, URSS, s/d). Cotejada
com a versão francesa de O Capital,
I, tradução de J. Roy, revista por Karl Marx, ed. 1875.
4Edição
após edição, Marx procurou melhorar a argumentação e a exposição, torná-la mais
compreensível, por vezes tirando partido das soluções encontradas pelos tradutores, em especial na primeira edição francesa. Encontramos diferenças
muito consideráveis de uma edição a outra (chegando ao ponto de
períodos inteiros aparecerem e desaparecerem). Suponho que a
urgência de concluir o seu trabalho e a luta constante, nessa fase da sua vida, contra os
problemas de saúde impediram o autor de alcançar o apuro
definitivo no texto d'O Capital. Nas presentes traduções baseei-me na versão inglesa
revista por Engels, temperando-a nalguns passos à luz da versão
francesa revista pelo autor, mas fi-lo com bastante
ligeireza, não me esmerando por alcançar a síntese ideal –
daí chamar-lhes ad hoc.
Imagem: peça de Nataliya Slinko
Versões: este artigo foi editado e corrigido em 19/08/2015.
Versões: este artigo foi editado e corrigido em 19/08/2015.
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