13/06/15

Nó Górdio


1. O pacto social

A expressão «pacto social» tornou-se um pouco confusa para muita gente. Esta confusão, contudo, não é intrínseca, não tem razão de ser e resolve-se mandando a cultura dominante (anglófona) às urtigas, regressando à etimologia latina e separando dois conceitos entretanto amalgamados:
  • contrato social remete para as ideias de Jean-Jacques Rousseau e quejandos ou para as assembleias de accionistas; denota a ideia de compromisso entre a vontade individual e a norma colectiva, o Estado de direito. Se a palavra contrato tivesse conservado a grafia antiga (contracto), tornar-se-ia evidente a sua origem: tracto, particípio de trazer (=arrastar para um determinado lugar, na sua etimologia), pertence à mesma família de tractor, abstracto, distracção; de modo que, juntando-lhe o prefixo con, obtemos a ideia de convergência no mesmo lugar (por extensão: um acordo entre diversas partes);
  • pacto social remete para um processo de acordo entre várias entidades sociais, mediado e regulado pelo Estado. Embora a ideia pareça coincidir com a de contrato social, a palavra pacto introduz-lhe uma distinção essencial: o compromisso interclassista (entre o factor capital e o factor trabalho). Pacto pertence à família de pax (paz) e isso basta para fazer toda a diferença entre contrato social e pacto social. Historicamente, o que o pacto social realiza é um processo de tréguas numa guerra em curso entre duas ou mais classes sociais.
 


O primeiro pacto social dos tempos modernos, aquele que estabeleceu um modelo que vigora até aos dias de hoje, é conhecido por Acordos de Matignon (1936). Recordemos – embora de forma resumida e simplificada – alguns dos acontecimentos históricos que acompanham o seu nascimento.

Regressemos ao segundo quartel do século XX. Estamos no rescaldo da crise económica de 1929, talvez o primeiro grande exemplo à escala global do desvario especulativo das bolsas de valores. Por toda a Europa as forças fascistas organizam-se, em busca da «solução final»; nalguns lugares chegam ao poder, noutros apenas o rondam. Em Espanha os fascistas executam um golpe militar contra o governo de esquerda (frente popular); inicia-se a guerra civil entre fascistas e revolucionários. Nesse mesmo ano de 1936 são assinados na França os Acordos de Matignon
 
Por toda a Europa as correntes de esquerda são chamadas a tomar posição face ao conflito civil espanhol. Em grande parte, o futuro político dos povos europeus será determinado pela forma como as diversas correntes políticas vão reagir à guerra civil espanhola; uma gigantesca quota dessa responsabilidade recai sobre a política externa de Estaline, que pura e simplesmente manda assassinar o maior número possível de dirigentes da extrema esquerda espanhola (e depois mata os assassinos desses dirigentes, para que não restem traços dos acontecimentos históricos e não sejam discutidos os seus actos). Como a II Grande Guerra faz a sua entrada na cena histórica com estrondo e dela se retira com pompa e 70 milhões de mortos, a enorme importância, para o futuro dos povos europeus, dos acontecimentos revolucionários em Espanha e França torna-se invisível nos compêndios escolares
 
Em França os fascistas constituem uma força minoritária, ainda que importante, mas a direita no seu conjunto tem força suficiente para governar. Entretanto, por largos anos, sucedem-se as lutas intestinas nas organizações partidárias situadas na órbita da Internacional; comunistas, socialistas, trotskistas, semi-trotskistas e toda a sorte de anarquistas e radicais digladiam-se, por vezes de forma fratricida. Por fim, em 1936, face ao agigantar da direita francesa e do fascismo por toda a Europa (com destaque para Portugal, Espanha e Itália), alcançam um entendimento (acompanhado por duas grandes centrais sindicais e vários movimentos intelectuais e cívicos) e formam a famosa Frente Popular, que vence as eleições legislativas de Maio e Abril de 1936 e irá governar durante algum tempo. Porém, quando a esquerda no poder pensa que está tudo bem, que a sua confortável maioria lhes permitirá aplicar um conjunto de medidas saneadoras (ao fim e ao cabo keynesianas, que era o que estava na moda), os movimentos sociais pregam-lhes uma partida: de repente, por toda a parte, começam a levantar-se greves; as reivindicações dos trabalhadores soltam-se da trela controladora dos sindicatos e dos partidos; as ruas são inundadas por vários milhões de pessoas. 
 
Entre Maio e Junho de 1936 contam-se em França mais de 12.000 greves, num total de pelo menos 2 milhões de grevistas. Não são apenas os trabalhadores das grandes cinturas industriais, é toda a França que entra em ebulição; não são apenas os supostos sectores mais avançados (indústria pesada, transportes, indústria automóvel), é toda a gente, desde os operários metalúrgicos até às cabeleireiras, passando pelos empregados de balcão, jornaleiros, ardinas, tipógrafos, etc. 
 
O mais importante deste período de ebulição em França, contudo, não é a aritmética das greves, o número de grevistas (embora estes números, só por si, sejam impressionantes e difíceis de igualar). O factor fundamental para compreender a natureza desse período é qualitativo: greves com ocupação. Das 12.000 greves, 9000 são com ocupação das instalações de produção. Ao contrário do que sucede nas greves normais, os grevistas não se limitam a castigar os patrões com a paragem da produção – assenhoreiam-se dos meios de produção e das respectivas instalações. Já não estamos perante processos reivindicativos ou meramente defensivos, mas sim perante um grande passo no sentido da tomada de controle dos meios de produção. Por outras palavras: estamos perante um processo revolucionário em curso (PREC), ou pelo menos no seu limiar.

Nas fábricas ocupadas utiliza-se o espaço disponível para realizar bailes, peças de teatro, exposições, colóquios e debates, etc. – ou seja, até as artes e a cultura (no seu sentido restrito de instrumento do poder e das elites) começam a ser apropriadas pelas massas trabalhadoras. Simone Weil descreve a situação vivida como «as greves da alegria».

Esta situação é de tal forma assustadora para o patronato, que ele opta por não a reprimir violentamente (e se os soldados de repente se pusessem do lado dos insurrectos? – seria pior a emenda que o soneto…). Prefere apelar ao governo das esquerdas, à Frente Popular, para pôr ordem na situação de forma pacífica. Mas o curso dos acontecimentos é tão assustador para os membros da coligação no poder como para o capital, pois, como é típico nos processos revolucionários dos países avançados, os partidos tradicionais já não conseguem ter mão em muitos dos seus militantes … quanto mais na população em geral!

A solução inventada pelo governo da Frente Popular foi eficaz e ficou para a História, tornou-se um modelo que seria aplicado noutras épocas e noutros países: os governantes e as centrais sindicais propuseram às massas «descontroladas» um pacto social, um acordo de tréguas. Assim, a natureza do pacto social é marcada desde o seu início por um carácter inequívoco de traição das organizações políticas instaladas no poder, ou na sua órbita, a um processo revolucionário em curso. Trata-se de decretar tréguas numa guerra em que o poder instituído começa a recear uma derrota total e definitiva.

Entendamo-nos bem: numa negociação em que uma das partes (neste caso os movimentos sociais) tem uma força iniludível, muitas têm de ser as concessões reais feitas pelos poderes instituídos. Por isso os Acordos de Matignon constituem um ponto de referência, um marco assinalável na melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras: a semana de trabalho passou de 48 para 40 horas semanais; as férias passaram a ser obrigatórias e pagas (2 dias semanais, mais 2 semanas anuais); os trabalhadores que vão de férias passaram a ter uma redução de 40 % nos bilhetes de comboio; a banca não foi nacionalizada, mas o controle estatal sobre as instituições financeiras apertou-se um pouco mais; várias políticas keynesianas de investimento público foram implementadas; garantiu-se o direito de associação sindical, a protecção dos representantes sindicais e dos associados, a contratação colectiva; foram proibidos os «sindicatos amarelos» (formados pelos patrões); etc. 
 
Tudo isto nos é apresentado como uma grande vitória dos trabalhadores, quando na realidade é uma derrota negociada, pois todas estas conquistadas já tinham sido alcançadas pelos movimentos sociais (embora com outro aspecto formal, uma vez que o movimento revolucionário não procura imitar os formalismos do poder instituído); em compensação, muita coisa se perdeu e a fera foi amansada. Se assim não fosse – isto é, se muita coisa não tivesse sido perdida –, para quê propor um acordo em que se oferece aos trabalhadores o que eles já adquiriram?



2. O Pacto Social em Portugal

Embora o golpe militar de 25 de Novembro de 1975 tenha cortado as pernas às correntes militares que apoiavam os movimentos sociais ou que pelo menos recusavam reprimi-los, embora a retirada deste factor do tabuleiro político, ao repor a ameaça constante da repressão pela força armada, tenha tido efeitos nefastos na mobilização popular, é claro que a movimentação social não morreu de um dia para o outro – para isso seria necessário um banho de sangue de meio milhão de cidadãos, como aconteceu em Espanha em 1936-1939. A solução sangrenta não estava na moda europeia na década de 1970 e de resto, olhando para a História da Europa contemporânea, saltava à vista o modelo de resolução pacífica: o pacto social. Esta foi a solução adoptada, após o golpe militar de 1975, com a cumplicidade dos partidos parlamentares, da maioria dos sindicatos e da central sindical. Os portugueses foram pacificados e a democracia representativa floresceu, à custa de nova escalada no espírito de corrupção e traição. O regime democrático que hoje vivemos é marcado na sua origem precisamente por essa escalada inicial no espírito corrupto.

Neste caso, pode dizer-se: a História repete-se, a derrota do processo revolucionário foi obtida graças a uma velha fórmula bem conhecida e testada – e, aparentemente, infalível.

Atribuo uma importância especial ao vasto enquadramento histórico e internacional do Pacto Social português que vos apresentei, porque creio que, ao mesmo tempo que assistimos ao esforço louvável de alguns autores para ressuscitarem a memória esmagada do PREC português, vemos reforçada uma mitologia folclórica que apresenta a quase-revolução portuguesa como um caso ímpar na História da Europa, um exemplo singular de «pacifismo», eivado duma alegria inédita e recheado de cravos, traído de forma supostamente inaudita por um pacto social.

a beleza do pacto social

Este pacto social, depois de vigorar durante mais de 3 décadas, foi rasgado; já não existe, nem no papel, nem na prática. E no entanto aqueles que, em nome da população, o assinaram outrora (os partidos de esquerda, as centrais sindicais) mantêm em cena o seu espectáculo, fazendo crer que o pacto ainda vigora na vida real e que apenas estaríamos perante algumas tentativas perversas de não cumprimento dos acordos feitos.


3. O Nó Górdio

Uma das muitas lendas ligadas à vida e às aventuras de Alexandre Magno (356 a. C. - 326 a. C.) é a do Nó Górdio. As inúmeras variantes da lenda podem ser resumidas assim: um rei morto sem descendência, de seu nome Górdio, deixa uma carroça atada a um poste; suceder-lhe-ia no trono quem fosse capaz de libertar a carroça, desfazendo o Nó que remata a corda. Mas o Nó é de tal forma gordo e intrincado, que durante 500 anos ninguém consegue desfazê-lo. Até que um dia chega Alexandre Magno, analisa o problema e toma uma resolução simples e rápida: pega na espada e corta o Nó, libertando a carroça e tornando-se rei.


O Nó Górdio tornou-se assim metáfora duma crise aparentemente sem solução, a não ser que alguém tome uma posição de força e aplique métodos imprevistos no «manual». É uma situação de impasse sem solução regrada, cuja única resolução possível assenta numa conjugação de criatividade e força bruta.

Enquanto o Pacto Social vigorou, melhor ou pior, em Portugal, em particular sob a forma de Estado social e contratação colectiva, o espectro do Nó Górdio não se colocava. Uma vez rasgado o Pacto Social, o Nó Górdio torna-se a metáfora perfeita do impasse em que nos encontramos.

A situação política em Portugal (como de resto em toda a Europa, creio eu) atingiu o ponto de Nó Górdio. As duas pontas do nó encontram-se de tal forma emaranhadas, que nenhum par de mãos, por mais habilidosas e delicadas que sejam, conseguem desemaranhá-las. Numa ponta encontramos um centrão inabalavelmente instalado numa máquina de poder fortificada, não há como abrir brecha. Do outro lado encontramos duas centrais sindicais e um vasto conjunto de sindicatos e pseudo-organizações populares (comissões de utentes, etc.) onde se entrincheirou uma clique burocrática de tal forma fortificada, que não há como abrir brecha. Juntas, constituem um nó inviolável no qual as duas pontas (em linguagem náutica convenientemente chamadas chicotes) se unem de forma coesa. Como se chegou aqui é assunto que não poderei desenvolver neste artigo já demasiado longo. O que importa saber é que, ainda que mais 500 anos passem, jamais se encontrará forma de desfazer este nó.
Resta a solução alexandrina. Quanto a isto não creio que devam restar dúvidas. O problema que se nos coloca é o seguinte: qual o apetrecho certo para cortar o nó? Até que ponto deve ser afiada a lâmina? Que forma deve ter?

Vários sectores e camadas da sociedade começam a aperceber-se de que a única solução possível é alexandrina. Assim, por exemplo, a intocabilidade dos sindicatos, que era sagrada até há pouco tempo, começa agora a ser posta em causa – por exemplo: se este sindicato não funciona, faça-se outro. É perceptível que a movimentação social, apesar de muito débil, apesar de situada nos antípodas do PREC, começa a tentear em busca da lâmina que romperá o Nó Górdio. 
 
Não sou eu certamente quem saberá dizer como forjar a lâmina, que aço usar, que forma dar-lhe. Têm de ser as próprias pessoas, sujeitas ao nó, a construir a solução. A mim e a outros que tais compete apenas dizer: olhem que esse nó, jamais conseguirão desfazê-lo. E este alerta é tanto mais importante quanto nos encontramos já em plena campanha eleitoral, esse lodaçal onde medram os fautores de pactos sociais, venham eles da direita ou da esquerda.

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