04/06/15

Esquizofrénicos, mitómanos e madraços



Vivemos uma das eras de maior intensidade mitológica na história da humanidade. Dois exemplos bastam, creio eu, para ilustrar esta ideia.

O primeiro é-nos dado pela tão propalada ideia de vivermos uma era dominada pela imagem. Numa época em que praticamente toda a gente sabe ler e escrever, em que a leitura dos jornais é prática corrente, em que a palavra transmitida através da rádio+tv e o consumo massivo de música comercial atingiram o paroxismo, dizer que esta era é marcada pelo império da imagem indicia uma disrupção com a realidade. Por um princípio muito simples de adequação entre os meios materiais e as relações sociais, é fácil perceber que o império da imagem (juntamente com a transmissão oral do conhecimento) só pode ter acontecido em épocas anteriores à era de Gutenberg, mais tarde cumulada pela «democratização» do ensino básico e secundário.

O segundo exemplo é-nos dado pela ideia corrente de que nunca as «luzes» foram tão fortes, de que vivemos a era da racionalidade e da ciência por excelência. Eis-nos perante o mais espantoso dos mitos, pois ele não remete para fictícias entidades exteriores a nós mesmos (caso dos deuses do Olimpo e do ET), mas sim para dentro de nós próprios. Graças a essa espécie de mito tautológico, a democracia representativa e todas as instituições a ela inerentes podem tornar-se um grandioso espectáculo mitológico, sob a aparência de uma racionalidade à prova de bala. O mecanismo central deste espectáculo, como apontou Guy Debord de forma certeira, consiste em fazer intermediar todas as relações sociais através da imagem – devendo o termo «imagem» ser entendido aqui em sentido lato.

Esta disfunção social e individual é convenientemente expressa pelas proclamações delirantes de numerosos comentadores. Começa a ser voz corrente entre eles que os marginais, a violência, os lumpen, os chungas, os que querem viver à custa do trabalho dos outros, cresceram enormemente na nossa sociedade. Na origem desta mitologia encontramos um equívoco de classe: todos os comentadores de serviço nas academias e nos meios de comunicação de massas são – por origem ou por opção – pequeno-burgueses que durante a maior parte das suas vidas puderam ignorar a realidade vivida noutras camadas sociais, convencendo-se assim de que existia no país uma cultura mais ou menos uniforme (o sonho mitológico de Salazar), com ligeiras variações, pois claro, muito convenientes para manter as distinções e atributos de classe. Esses opinadores bem instalados na hierarquia social não faziam a mais pequena ideia de que pudessem existir gigantescos mundos paralelos ao seu próprio mundo minúsculo; já tinham ouvido uns rumores acerca disso, sim, mas tudo se resumia nas suas cabeças a casos marginais e nebulosos contos de fadas. E assim tomam a realidade por mito e o mito por realidade.


Muitos desses opinadores são «tios» e «tias» da Linha de Cascais (digamos assim, para simplificar). Não possuíam a noção real, vivida, de que, no interior do seu próprio concelho de residência, ocultos por detrás dos montes que bordejam a Linha do Estoril, viviam milhares de pessoas – trabalhadores com salários miseráveis, contrabandistas, dealers, desempregados, alcoólicos, marginais, lumpen, trolhas, serralheiros mecânicos, e até as mulheres-a-dias que trabalhavam na casa desses mesmos «tios» e «tias» e que, ao final do dia, desapareciam por artes mágicas em direcção a nenhures. Esse imenso «zoo» vivia confinado aos seus bairros de lata; não lhe ficava bem aparecer nos mesmos lugares públicos frequentados por «tios» e «tias», portanto era natural que estes desconhecessem a existência desse mundo imenso. Mesmo no centro de cidades como Lisboa a «fauna» de certos bairros tradicionais da capital, apesar de abundante, permanecia «invisível» a uma classe média e pequeno-burguesa que julgava – em razão da sua proximidade ao poder económico, político e cultural – ser o modelo vigente para todo o país.

E de repente dá-se o choque: entramos numa época em que todo aquele «zoo» adquire os mesmos direitos que os senhores professores doutores, os advogados, os funcionários públicos do escalão médio-alto, os pequenos comerciantes, os «tios» e «tias» da Linha; de repente, toda «aquela gentinha» pode passear-se à vontade no centro da cidade, gastar dinheiro nos mesmos cafés, nos mesmos bares, nas mesmas lojas de roupa da moda, nos mesmos cinemas, nos mesmos centros comerciais em que o «tio» e a «tia» se passeiam de braço dado, numa réplica serôdia da Avenida lisboeta de Ramalho Ortigão e Bordalo Pinheiro.

«Essa gentinha» pertence de facto a um mundo alheio ao bom pequeno-burguês. Vestem-se de outra maneira, cortam o cabelo de outra maneira, praticam outras maneiras, têm outras falas – em suma, têm uma cultura própria, distinta, por incrível que isto pareça aos olhos dos doutores comentadores. Uma diferença cultural tão pronunciada torna-se assustadora, no mesmo sentido em que os Gregos antigos chamavam genericamente bárbaros aos povos situados a norte do território helénico. Do ponto de vista da «tia da Linha», os povos situados a norte da Linha são alienígenas assustadores, radicalmente diferentes e por isso incompreensíveis; e ela, cruzando-se com eles, tenderá a atravessar para o outro lado da rua, esquivando-se à proximidade e exalando o perfume do medo.

A intrusão «dessa gentinha» na cidade, nos centros comerciais e nos lugares de lazer torna-se confusa para o bom pequeno-burguês – mas o que é isto?, o que é que eles andam aqui a fazer?, então «essa gentalha» não devia estar a trabalhar? E de repente começamos a ouvir insistentes declarações de que «essa canalha» não quer mas é trabalhar... pois se quisessem trabalhar, não andariam pelos mesmos lugares de prazer, lazer e consumo que o bom pequeno-burguês frequenta, não vos parece?
A irrupção «dessa gentinha» por toda a parte, como se tivessem subitamente nascido dos interstícios nas pedras da calçada, é interpretada como o nascimento de um novo estrato social, uma coisa inédita que resultaria das actuais políticas de miséria e austeridade, um sintoma da «crise», um sinal de alarme e dos tempos.

Não passa pela cabeça dos comentadores de serviço a explicação mais simples: «essa gentinha» já existia, sempre existiu. Dando-se conta por fim da existência desse imenso «zoo», o bom comentador pequeno-burguês, confortavelmente instalado na sua cátedra ou na sua coluna de pasquim, declara o fim do mundo; olha para esse mar imenso de desempregados e miseráveis e decide que ninguém quer trabalhar, que todo esse zoo quer viver à custa do trabalho dos outros (ou seja, dele, o comentador).
A ideia de que o mundo inteiro se rege ou deva reger pelo modelo cultural, moral e comportamental do bom pequeno-burguês continua a ser tão forte, ou mais, do que há 100 anos, se é que tal coisa pode ser medida, e ainda hoje corresponde a uma imagem romântica, balzaciana. Na construção dessa imagem concorrem várias formas de arte que passam ao lado da maior parte da realidade social e cultural que recobre o planeta.

Na construção mitológica de uma mundividência, as artes desempenham um papel fundamental. Delira romântica e demencialmente quem afirma que as artes são um meio de descoberta da verdade profunda das pessoas e da sociedade. Por mais bela que a frase soe, a realidade é-lhe oposta: as expressões artísticas são, salvo raras excepções, um dos principais instrumentos de perpetuação duma imagem mítica da realidade – uma imagem adequada à perpetuação dos poderes instalados e da alienação. Nesse sentido, a esmagadora maioria da arte não é do tipo lúdico, mas sim do tipo funcional: cumpre uma função e cumpre-a bem. Perdoem-me os raros autores capazes de beliscar a esquizofrenia e a mitologia vigentes.

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