Entretanto, as leis respeitantes a terrorismo, mesmo no seu estado actual, já nos dão pano para mangas. A legislação portuguesa, como de costume, papagueia obedientemente as indicações do Conselho Europeu. No caso vertente, a Decisão-Quadro 2008/919/JAI define o terrorismo como actos intencionais praticados com o objectivo de:
- intimidar gravemente uma população, ou
- constranger indevidamente os poderes públicos, ou uma organização internacional, a praticar ou a abster-se de praticar qualquer acto, ou
- desestabilizar gravemente ou destruir as estruturas fundamentais políticas, constitucionais, económicas ou sociais de um país, ou de uma organização internacional.
A actual lei portuguesa contra o terrorismo subscreve estas definições e acrescenta como crime de terrorismo:
- Crime contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas;
- Actos que destruam ou que impossibilitem o funcionamento ou desviem dos seus fins normais, (...) instalações de serviços públicos ou destinadas ao abastecimento e satisfação de necessidades vitais da população.
A título de exemplo, a PSP e a Câmara Municipal da Amadora surgem, sem sombra de dúvida, como organizações terroristas: mataram e ofenderam fisicamente inúmeras pessoas nos últimos 4 anos; prejudicaram o direito à habitação, a liberdade de expressão e manifestação e vários outros direitos e garantias constitucionais e europeias, bem como diversas funções sociais do Estado português.
O comando da PSP é igualmente culpado de terrorismo, uma vez que coloca em diversas esquadras de bairros periféricos e multi-étnicos um número muito avultado de agentes com comportamentos e ideias confessamente racistas e xenófobos, que não se coíbem de ostentar símbolos nazis e de perseguir (com ameaças e sevícias físicas) os activistas defensores dos direitos humanos e da liberdade de expressão e organização com fins cívicos; de os fazer reféns dentro da esquadra da polícia e espancá-los e aplicar-lhes sevícias tais, que as vítimas têm vergonha de as descrever.
Estes actos atentam contra uma quantidade de leis e funções do Estado difíceis de listar em toda a sua extensão. Destaco apenas a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: «Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental»; «Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes»; «Todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião»; «Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos (...)»; «Todas as pessoas têm direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação a todos os níveis».
Também os actos administrativos do Governo executados com o fim de asfixiarem financeiramente e tornarem inoperantes os hospitais, escolas e outros serviços públicos, deviam ser julgados como crimes de terrorismo, à face destas leis. Pode dizer-se, sem receio de exagero ou retórica, que o Governo português é um dos campeões do terrorismo. Mais uma vez, fico-me pela Carta europeia de direitos:
- «As artes e a investigação científica são livres. É respeitada a liberdade académica»
- «Todas as pessoas têm direito à educação, bem como ao acesso à formação profissional e contínua. Este direito inclui a possibilidade de frequentar gratuitamente o ensino obrigatório.»
- «Todas as pessoas têm o direito de trabalhar e de exercer uma profissão livremente escolhida ou aceite.»
- «A União reconhece e respeita o direito das pessoas idosas a uma existência condigna e independente e à sua participação na vida social e cultural.»
- «Os trabalhadores e as entidades patronais, ou as respetivas organizações, têm (...) o direito de negociar e de celebrar convenções colectivas (...)»
- «Todas as pessoas têm o direito de aceder à prevenção em matéria de saúde e de beneficiar de cuidados médicos (...)»
A sociedade do espectáculo e o momento da verdade
Há, contudo, um corolário da teoria da «sociedade do espectáculo» que é fácil de compreender e rápido de explicitar: na sociedade capitalista contemporânea, a verdade é um momento da mentira.
Esta afirmação pode parecer poética, ou abstracta, mas na realidade é bastante rigorosa e terra-a-terra. Vejamos um exemplo simples: as eleições democráticas. As eleições são, sem dúvida, um momento de verdade – por regra não encontramos chapeladas nem falsificação das urnas e dos resultados. Mas elas fazem parte dum espectáculo, duma ficção montada, na qual o espectador não deve tomar parte, limitando-se a assistir passivamente. As eleições democráticas fazem parte do gigantesco espectáculo da democracia, da governação em «nome do povo». Como é normal em qualquer espectáculo, também no espectáculo da democracia tudo é falso, tudo é encenado, tudo é ficção – ainda que façam parte da sua dialéctica alguns momentos de verdade.
À sociedade do espectáculo, feita de ficções e espectadores passivos, Debord contrapõe o projecto de um mundo sem espectadores, em que todos são participantes e decidem em cada momento o seu próprio guião de acção.
As leis portuguesas e europeias contra o terrorismo são mais um ponto alto da sociedade do espectáculo. Ainda que haja de facto, aqui e ali, bombas no metro e atentados pessoais lançados por sociopatas (momentos de verdade da mentira), o grande objectivo do espectáculo consiste precisamente em dar cobertura ao terrorismo de Estado. Este terrorismo, na sua versão actual, tem mesmo uma ideologia, um manifesto proclamado: as políticas de austeridade.
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