24/01/15

Descubra as diferenças


A chacina no Charlie Hebdo, seguida da reunião de 30 dos maiores facínoras e criminosos de guerra do planeta nas ruas de Paris em defesa das «liberdades» e do «European way of life», expôs a hipocrisia estrutural da cultura ocidental em toda a sua profundidade.
Comentadores, sociólogos e politólogos de todas as cores e feitios vêm a terreiro dizer as mais variadas e disparatadas coisas a este propósito. A mensagem subliminar presente no discurso de todos eles é a de que existe um abismo civilizacional entre a cultura ocidental e a cultura islâmica. Quando a estupidez e a hipocrisia se juntam em tão elevada concentração, resta desejar que venha daí uma brigada armada que nos extermine a todos.


A crueldade
As civilizações que nos antecederam, neste cantinho ocidental, cultivavam a crueldade e a violência. Este traço era generalizado e assumido; era também uma forma consagrada de entretenimento colectivo; aprendia-se no berço, como ritual de socialização e integração. Vestígio arqueológico dessa realidade são, por exemplo, os pelourinhos e postes espalhados por todas as cidades e vilas de Portugal, onde os condenados eram expostos em praça pública, podendo-se atirar-lhes tomates e pedras à vontade. A punição (máxima ou mínima) em praça pública faz parte da nossa matriz cultural; o circo romano (com mais de classe, pompa e arte que o poste medieval) está profundamente embebido nos nossos cérebros. O «criminoso», o «desviante», o «anormal», o «bruxo» fazem parte da tradição de entretenimento público, do gáudio oferecido à populaça como exercício da crueldade e extravasão emocional.
As formas de crueldade podem variar consoante a região, mas na sua essência não existe qualquer cesura entre o mundo europeu contemporâneo e o mundo islâmico. Nas zonas do interior, menos urbanas, mais rurais, é mais fácil encontrarmos numerosos sinais deste traço cultural: os gatos que as crianças entalam entre pesados portões de ferro até esguicharem as tripas, os cães presos com guita pelos tomates, o cabo de aço negro esticado na estrada, para que o guarda-nocturno da fábrica, ao descer de noite a montanha na sua motoreta, se estampe pela encosta abaixo, etc. Menos óbvio, mas igualmente mortífero, é o comportamento coscuvilheiro e intriguista das comadres embiocadas à esquina da igreja ou da mercearia, transformando num inferno sem remissão a vida de alguma desgraçada mulher (ou homem) que não corresponda exactamente aos padrões comportamentais da comunidade.

O apedrejamento
Os comentadores, por escrito ou em mesa redonda, torcem a cara de nojo perante as cenas islâmicas de apedrejamento ou de chibatada (ou qualquer outro castigo corporal) transmitidas pela TV – subentendem: felizmente vimo-nos livres desses costumes bárbaros.
Não entendo como podem alguns destes comentadores possuir autênticas colecções de canudos e ao mesmo tempo serem tão obtusos. Obviamente, a comparação entre duas culturas não pode ser linear, formal e directa. As arenas europeias contemporâneas já não são montadas nas ruas e praças onde transita fisicamente a multidão – erguem-se na ágora virtual dos meios de comunicação e das redes sociais. A TV instala diariamente os pelourinhos e arenas onde os indiciados de crime, de desvio ou de aberração são expostos para gáudio público; ao vivo e em directo, em coisas chamadas, por exemplo, «Casa dos Segredos», a TV monta cenas de degradação explícita, com personagens reais – pescados em casas de alterne e noutros lugares «desviantes» –, para nos entreterem com as suas lutas mesquinhas, as suas cópulas desprovidas de imaginação ou erotismo e os seus impropérios tripeiros.
O facto de as arenas passarem de «em acto» a «virtuais» não altera um milímetro a substância dos acontecimentos e comportamentos. Num pelourinho famoso chamado «Correio da Manhã», por exemplo, são diariamente expostos o tresloucado que baleou a mulher e os filhos, o ex-ministro detido em prisão e salpicado de tomates virtuais, os compadres do ex-ministro que vão visitá-lo em fila (vorazmente seguidos pelas câmaras de televisão), os mortos nas urgências hospitalares por excesso de tempo de espera.
Se algum dos meus leitores se sobressaltou com este último exemplo, julgando-o deslocado, se na sua candura confundiu a sua própria morbidez com compaixão, então é preciso que se acalme e faça a seguinte pergunta: a população, supostamente indignada e condoída, limitou-se ao consumo circense das notícias, ou juntou-se em massa para ir defenestrar os sucessivos ministros da saúde que esbulharam o serviço nacional de saúde? Estamos perante uma morbidez passiva, circense, ou perante uma passagem à acção colectiva, civilizadora e salvífica?
Devo confessar que eu, pacifista convicto, não hesito em fazer a apologia da autodefesa – da autodefesa da dignidade humana, por todos os meios à disposição, incluindo os da violência revolucionária. Consumir – de queixo descaído e baba a escorrer pelo canto da boca, num estado de inanição total – as imagens de televisão pejadas de macas sobrelotadas e velhos a morrerem nas salas de espera dos hospitais da maravilhosa civilização europeia é, para mim, um comportamento tão execrável como as execuções islamitas em praça pública, com a assistência a bater palmas.
Correr uma turba sobre o ministro da saúde e desmembrá-lo ali mesmo em praça pública, isso sim, seria um acto legítimo que aconselho vivamente. Seria um belo aviso à navegação de todos os facínoras no poder. Seria, finalmente, o prenúncio de morte da hipocrisia estrutural da nossa cultura.
Se as imagens de guerra, sangue e execução sumária constantes dos filmes de ficção, que passam todos os dias nos canais de TV por cabo (virtuais mas ainda assim efectivas), são um comportamento aceitável na nossa cultura, então tenho de ripostar que desmembrar, apedrejar, defenestrar, executar com um tiro na nuca os representantes do poder que nos oprime e que provoca dezenas ou milhares de mortos em acto, seria um enorme salto qualitativo civilizacional.

A situação da mulher
O folclore ocidental torce o rosto de nojo perante o papel e as regras impostas às mulheres no mundo islâmico. Não percebo. Onde é que está a melhoria, numa civilização que incita as mulheres a serem assalariadas... na condição de manterem o seu papel na economia doméstica? A mim parece-me muito mais grave a dupla escravidão do que a singela escravidão de antanho (mas eu não sou mulher, por isso podem acusar-me de parcialidade e bater no peito). E qual é o «atraso» civilizacional de um homem ou mulher, jovem ou reformado, ficarem em casa a tratar das crianças e da produção de numerosos aspectos necessários à sobrevivência da sua pequena comunidade (familiar ou outra)?
Dir-me-ão: trata-se de dar independência económica à mulher, através do salário, para que ela possa por si mesma adquirir os meios para alcançar a sua independência plena. Estão a brincar comigo, não é verdade? O salário, como fonte de autonomia????? O trabalho assalariado, como fonte de libertação???? Se de facto alguém quisesse oferecer à mulher os meios materiais e económicos necessários à sua emancipação, a questão há muito tempo estaria resolvida: bastaria instituir um rendimento mediano universal a todos quantos quisessem participar na vida e na produção colectiva fora do mercado de trabalho capitalista – por exemplo, ficando «em casa» a tratar das crianças e do jantar para os escravos assalariados que regressam à noite exaustos.
Porém, a hipocrisia não tem limites – havendo até alguma gente muito esquerdista, muito prá-frentista, muito revolucionarista, que vê no trabalho (assalariado, entenda-se) a fonte universal, obrigatória, de libertação e igualdade … O tempo dos negreiros não esgota nunca mais!


O comércio da solidariedade
Creio que não conheço mais nenhum lugar do mundo, fora da Europa, dos EUA e dos seus satélites, onde uma mulher em trabalho de parto, ao apelar ao auxílio da sua rede social de proximidade (no caso europeu, um hospital público), comece por ser inquirida sobre a sua capacidade para pagar uma taxa moderadora de 50 € ou apresentar um cartão de seguro-saúde, sob pena de ser mandada para a rua. Não estou a ver uma aldeia de África (sem hospital nem posto médico, bem entendido) onde a parturiente seja posta pela comunidade local perante este dilema: ou apresentas 50 €, ou não terás auxílio da tua comunidade: nem parteira, nem curandeiro, nem xamã, nem tias nem avós, nem vizinhas – desenrasca-te.
Entendamo-nos: é nesses lugares recônditos do mundo que a civilização ocidental vai despejar as suas bombas, para instaurar os direitos humanos e cívicos.

A situação dos homossexuais
Aí está um campo em que a civilização ocidental faz juras de superioridade imbatível. Pois bem: perguntem aos casais homossexuais (fora do círculo protector e anónimo do centro lisboeta) o que lhes aconteceu. A nossa magnífica civilização nega-lhes emprego, o senhorio despeja-os, os vizinhos atiram-lhes óleo para cima dos lençóis brancos postos a secar no estendal, intrigam junto do senhorio, protestam os «maus exemplos» dados aos seus filhos, o fisco persegue-os, a polícia ri-se deles, …
Perguntem aos habitantes homossexuais das bravas vilas de pescadores, por esse litoral fora, como fazem eles para existirem inteiramente como pessoas – apanham a camioneta de carreira, encontram-se à noite nos bares lisboetas, têm suas aventuras e regressam no dia seguinte à sua pequena cidade, onde, ao cruzarem-se com quem foderam na véspera, fazem de conta que não se conhecem e de preferência nem se cumprimentam. É bárbaro, mas assim manda a etiqueta da civilização mais hipócrita do mundo, essa que luta contra os bárbaros do próximo, do médio e do longínquo oriente, despejando por lá o produto da sua actividade económica mais rentável: material de guerra e carne para canhão.
As declarações e demonstrações virtuais (entre as quais se contam as jurídicas) dos europeus em favor da aceitação de todas as opções sexuais, da igualdade e da tolerância não têm grande valor no mundo real. Diria eu que ao menos, noutras culturas (as infiéis à nossa própria fé cultural), a intolerância e a crueldade contra as opções individuais não são camufladas em hipocrisia: o que é, é; e, além de ser, ergue-se em público com frontalidade; não deixa de ser menos execrável por isso, a meu ver – mas ao menos não ilude nem se esconde nas sombras.

A situação dos negros, dos monhés, dos muçulmanos e demais cidadãos dos «países em desenvolvimento»

Ao fim de várias semanas de trabalho documental com operários da construção civil e de um esforço continuado de confiança, alguns negros acabaram por confessar-me o óbvio: preferiam não trabalhar no norte do país (ou, de modo geral, fora da área urbana de Lisboa), por uma questão de sobrevivência – ao fim do dia, regressando a pé pela estrada, havia sempre o perigo de serem abalroados por um carro, por mais que se desviassem (creio que ainda corre a anedota do «abre a porta do carro, a ver se consigo acertar-lhe»).
Não foi uma confissão fácil a destes operários, porque os imigrantes provenientes doutras civilizações – ao contrário do que numerosos idiotas declararam na TV nas últimas semanas – não se mantêm completamente à parte, cegos e surdos à nossa cultura. Podem viver em guetos à parte, sim, mas sabem perfeitamente que a civilização que os acolhe comete os mesmos pecados que eles já conhecem de cor e salteado, apenas diferindo na condição de deverem ser camuflados em hipocrisia – e por isso não fica bem confessar ser-se vítima de racismo e xenofobia em Portugal. Alguns destes migrantes vêm de países onde o racismo e a xenofobia derramam litros de sangue todos os dias, mas onde o que é, é; ninguém faz de conta que não aconteceu nada, que não pensa nada, que não fez nada de mal.

Um modelo de paz
Sobre as barbaridades e atrocidades de guerra praticados pelas nações desenvolvidas do Norte contra todo o Terceiro Mundo, já outros disseram mais e melhor do que eu poderia aqui listar. Contudo, não posso deixar de mencionar as declarações de políticos e analistas sobre o papel pacificador e civilizador da Europa. Nas palavras de todos os governantes europeus, de todos os políticos de direita e de todos os representantes da União Europeia, o mundo inteiro, a começar pelos turcos aqui ao lado e a acabar nos chineses lá nos antípodas, espreita-nos com olhos marejados de lágrimas e admiração pela forma magnífica como concebemos e implementámos os direitos humanos.
Mesmo não falando da mentira nojenta que é a firmação de que a carta dos direitos humanos, sociais e culturais das pessoas e dos povos é invenção exclusiva dos europeus, resta este pequeno problema: quem despoletou duas guerras mundiais que produziram os maiores holocaustos da história da humanidade? Quem despoletou a terceira guerra mundial em curso (desta feita lançada nos moldes típicos da hipocrisia: afirmando-se como não guerra, não mundial e não nossa)? Tanto quanto sei, não foram os nossos vizinhos do outro lado do Mediterrâneo; não foram os paquistaneses; não foram os povos da América do Sul; não foram os Afegãos; não foram os Iranianos. A cornucópia do holocausto existe, sim, mas está sediada na Europa – donde é alegremente exportada para todas as partes do mundo.
Dizer que os migrantes dos países onde estamos a lançar bombas – ou a vender bombas para serem lançadas sobre a população – anseiam por fazer parte da nossa civilização avançada é pelo menos hilariante. O que eles querem é alcançar um modelo de justiça, liberdade, autonomia, igualdade, liberdade e fraternidade que, muito seguramente, podem construir na terra deles, mas que não existe em acto na Europa. Por aqui não se aprende a ser mais livre – aprende-se a ser mais hipócrita.

E todo o resto que fica por dizer
Liberdade de imprensa? Liberdade de expressão? Liberdade de identidade e costumes sexuais? Liberdade de movimentos? Liberdade de escolha e vocação? Liberdade … Não brinquem comigo. A única coisa em que a cultura europeia e norte-americana atingiu o ápice da perfeição é o exercício da hipocrisia.

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