29/12/14

Crónica do fim de uma era


Na minha experiência de vida, empírica, não medida, particular, uma convicção se formou cedo: o grosso da população rege-se por tendências místicas e age segundo os mandamentos da fé, mais que da ciência. Vale o que vale esta convicção, e não tenciono eu esgrimi-la com quem quer que seja.

A fé, para que nos entendamos, localizo-a eu num domínio da mente que não encontra um único ponto de intercepção com o domínio da razão lógica. Estes dois domínios vivem separados por natureza; pretender esgrimir as razões da lógica contra as razões da fé (ou vice-versa) é uma impossibilidade material – seria o mesmo que tentar nadar mariposa num contentor de areia.


Até há poucas décadas atrás, as mais das vezes (mas não só e nem sempre) o pendor místico consubstanciava-se na fé em Deus. Batiam-me os sacristas da fé à porta aos domingos de manhã, pacíficos, pios, mas muito ignorantes da enorme irritação que me causavam ao desassossegar-me dos lençóis num dia de santo descanso.

Com o correr do tempo, a campainha domingueira foi tocando cada vez mais raramente e os fiéis de Deus foram desaparecendo do meu mapa social. Conheço hoje místicos de todos os géneros, para todos os gostos, paladares e fés: das estrelas, das teorias da conspiração, das mezinhas, das marcas de prestígio … e, acima de tudo, da grande fé dos tempos correntes: o Mercado.

Aparentemente, onde havia uma uniformidade (a da fé em Deus) passou a haver uma barafunda changeante onde a diversidade das fezadas ascende tendencialmente ao infinito, resultando daí que, na prática (embora esta prática seja toda feita de aparências), a cada pessoa sua fé. É bem verdade, as aparências iludem: a diversidade das fezadas, de facto e de fundo, não é assim tanta.

O que distingue a fé num Ser Divino da fé nas Estrelas ou no Mercado é o seu elemento essencial: os Seres Divinos são, como a própria expressão o diz, seres, pessoas com superpoderes, com capacidades muito acima das nossas [nem tanto assim, no caso das mitologias primitivas, entre as quais a grega pré-clássica], mas ainda assim pessoas, seres animados; em contrapartida, as Estrelas, o Mercado ou as ondas hertzianas dos telemóveis são coisas inanimadas, entidades às quais (sejam elas abstractas ou concretas) não podemos dar um par de estalos, insultar-lhes a mãe, oferecer-lhes uma cerveja ou mijar-lhes em cima. Ora o que distingue um ser animado (isto é, voluntariamente actuante) duma coisa inanimada é essencialmente o facto de a entidade actuante ter, por definição, uma práxis, e portanto tender a ter uma ética, ao contrário da coisa inanimada. Por isso, como é natural, quem tende a acreditar num deus animado, tende a adoptar uma ética. Sabemos que tudo isso são construções do espírito, que a ética de um deus – à semelhança do seu carácter, da sua história, dos seus feitos – é uma construção da imaginação colectiva, socialmente feita, desfeita e refeita (independentemente de ser recomendável ou não). Mas, construção ou não, imaginação ou não, existe e actua, e tem consequências.

É claro que não é necessário ter uma fé mística para construir um prontuário ético. Pode-se construir uma ética baseada simplesmente na razão. Mas não é esse o caminho mais escolhido.

Entendamo-nos bem: nada tenho contra o facto de muitas pessoas apenas funcionarem bem no domínio da não-lógica – pelo contrário, eu próprio gosto de praticar abundantemente essa parte da minha humanidade, ainda que não por via da fé. O que me preocupa é o facto de as pessoas que se colocam a tempo inteiro no domínio da fé, ao abandonarem o culto de um deus animado (e portanto de uma ética), entram em deriva comportamental.

O Mercado – esse deus maior entre a multidão de pequenos deuses contemporâneos –, sendo uma divindade inanimada, abstracta e virtual, foi concebido sem ética. Os seus fiéis prestam-lhe culto, dedicam-lhe sacrifícios voluntários, mas sacrificam degolando outros – evidentemente, pois é preciso uma ética de ferro para nos sacrificarmos a nós próprios. Actuar sem prontuário ético é para muitas pessoas motivo de ostentação e orgulho, qual medalha pregada ao peito; fá-las sentir-se em estado de graça e beatitude: ao sacrificar os outros, sentem-se mais próximas do seu deus. Assim, por exemplo, a aceitação da competição entre colegas (no emprego, na escola, em toda a parte) torna-se mais fácil, e até apetecida.

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Embora alguns escravos da fé não adorem o deus Mercado ou quejandos, nem por isso são menos incomodativos e irritantes. O que têm de comum com os demais crentes, é o facto de consagrarem às coisas inanimadas a sua fé (problema deles, para todos os efeitos) e os seus actos de fé (problema nosso, quase sempre). Assim, tudo o que fazem remete para alguma coisa contra a qual não podemos argumentar – porque, volto a recordar, trata-se de coisas inanimadas, não de seres.

Algumas pessoas afirmam que as ondas hertzianas dos telemóveis, das redes wi-fi, etc., as afectam directamente: impedem-nas de pensar; ou: induzem-nas a pensar coisa-e-tal; ou: impedem-nas de dormir, provocando-lhes mal-estar e mau humor; ou: induzem-nas a praticar certos actos e formas de relacionamento. Nisto em nada são diferentes das que metem a mochila às costas e partem à descoberta do mundo, a pé (problema/proveito delas), «porque assim está escrito nos astros» e no seu horóscopo pessoal; ou das que lêem as borras do chá antes de tomarem uma decisão.

O problema é que quando, há muitos anos, alguém me abordava pedindo uma esmola «por Deus», eu, se estivesse sem dinheiro e com veia antipática, até podia responder: «desculpe, mas eu nem sequer acredito em deuses». Hoje, quando me pedem coisas em nome das ondas hertzianas, ou da roleta, ou dos Audi distribuídos pelo departamento de finanças, ou do poder curativo das plantas, eu nem sequer posso dar a mesmíssima resposta simples e terminante, «desculpe, mas eu nem sequer acredito nas plantas» – são coisas inanimadas, sim, mas são coisas que existem, não posso negá-las; não se trata de um simples problema de ofensa às convicções pessoais, é um pouco mais complicado e finta todas as respostas razoáveis. E se me pedem em nome do Mercado, eu até posso (muito legitimamente, a meu ver) retorquir que não acredito no Mercado – mas neste caso não o faço porque não é um comportamento socialmente aceite e eu arriscar-me-ia a pesadas represálias.

As pequenas fezadas de antanho eram coisa relativamente inocente: que uma pessoa acreditasse num deus, nos astros, na lotaria, nas cartas ou nos desenhos herméticos das calçadas de Lisboa era coisa que dificilmente afectava terceiros; e beneficiava (com razão) do princípio da liberdade de consciência. Em contrapartida, quando alguém acredita que as radiações do telemóvel são o demónio em pessoa e quer obrigar toda a gente à sua volta a desligar os respectivos telemóveis, ultrapassou aquele limiar onde os actos de fé se transformam em cruzadas armadas; ou quando alguém nos quer impingir as mezinhas indicadas para todas as nossas maleitas (as quais, as mais das vezes, nem sequer existem, são apenas a desculpa abstracta para o exercício de um acto de fé); ou quando um economista começa a acreditar na magia dos números – em todos esses casos são geralmente terceiros quem paga as favas; é o acto sacrificial de que vos falava há pouco.

Não sei por isso dizer o que me irrita mais: se o economista místico, se o tarado das mezinhas, se o paranóico hertziano, se o cartomante militante, se a testemunha de Jeová, se o comentador televisivo da Bolsa, se o político adorador do Mercado, se …

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