18/11/14

As barqueiras e o Letes


Se bem entendi ao início as intenções metafóricas do programa «Barca do Inferno», difundido pelo canal televisivo RTP-Informação, propunham-se os autores, à maneira vicentina, construir uma barca onde temas e personagens políticos seriam indagados, medidos, sopesados e avaliados para se saber se caberiam na barca que conduz ao paraíso ou na que aporta ao inferno.



Na versão televisiva, duas barqueiras governam a barca do inferno, outras duas (durante as primeiras edições do programa, apenas uma) governam a do paraíso. A grande distância que vai de Gil Vicente à RTP, porém, torna instáveis estas duas barcas, pois enquanto na versão vicentina ambas se regem pelos mesmos fins (inquirir e sopesar os passageiros, usando para isso as medidas e alqueires do povo), na versão da RTP tudo é pervertido por um enervante vício contemporâneo: o contraditório simultâneo e instantâneo, a torto e a direito. As duas barcas televisivas não colaboram; combatem-se como navios inimigos, num cenário de guerra onde os passageiros, que deveriam ser o foco principal, se tornam mero adereço, e onde não existe tempo para a reflexão. O foco do espectáculo é assim deslocado para as próprias barqueiras, que aceitam o estado de guerra e pelejam entre si com enorme clangor, pondo-se a salvo os presuntivos passageiros.



Está portanto quebrada a metáfora, como se pode comprovar nesta passagem do texto vicentino original [acrescento facilitação para quem não está habituado à linguagem da época]:


ANJO
Que quereis?
FIDALGO
Que me digais,
pois parti tão sem aviso,
se a barca do Paraíso
é esta em que navegais.
ANJO
Esta é; que demandais?
FIDALGO
Que me leixeis [deixeis] embarcar.
Sou fidalgo de solar,
é bem que me recolhais.
ANJO
Não se embarca tirania
neste batel divinal.
FIDALGO
Não sei porque haveis por mal
que entre a minha senhoria...
ANJO
Pera vossa fantesia [presunção]
mui estreita é esta barca.
FIDALGO
Pera senhor de tal marca
nom há aqui mais cortesia?
Venha a prancha e atavio!
Levai-me desta ribeira!
ANJO
Não vindes vós de maneira
pera entrar neste navio.
Essoutro [o que vai para o inferno] vai mais vazio:
a cadeira entrará
e o rabo caberá
e todo vosso senhorio.
Ireis lá mais espaçoso,
vós e vossa senhoria,
cuidando na tirania
do pobre povo queixoso.
E porque, de generoso,
desprezastes os pequenos,
achar-vos-eis tanto menos
quanto mais fostes fumoso [vaidoso; governante africano de escravos].



É natural que na concepção deste tipo de programas televisivos haja vontades divergentes: uns visando alcançar um fim, outros outro. Cheira-me que estamos perante um exemplo extremo deste caso. É bem possível que alguém tenha desejado dar voz a um elemento da esquerda institucional (neste caso, Isabel Moreira, que tudo arrasta à força para o campo institucional, nem que seja o preço do grelo na Praça da Ribeira – é sua barca a cortiça da instituição, equipada de uns quantos remos canhotos) e, já agora, a um elemento da esquerda não institucional, revolucionária ou tendencialmente revolucionária (neste caso Raquel Varela, cuja barca é toda ela construída por trabalhadores – aquilo a que Vicente chamava «povo», ou «pobre povo queixoso»).

Quando o quarteto do programa é completado, há duas semanas, com Sofia Vala Rocha, percebe-se por fim a natureza da outra tendência presente na direcção do programa: tentar queimar uma voz única – a de Raquel Varela –, que pouco a pouco ia conquistando presença nos jornais, na rádio, nos meios científicos, na rede digital, ameaçando tornar-se um dia uma espécie fenómeno mediático à la Iglesias (salvo as devidas distâncias). Ora, em 100.000 anos de humanidade, nada melhor se conseguiu inventar, como poluente da imagem pessoal, do que a TV. Havia que arrastar Raquel Varela para um desses tanques poluentes.

Algures, nos bastidores do programa «Barca do Inferno», julgo discernir um desses génios recatados da estratégia de comunicação, uma dessas figuras que, nunca dando nas vistas, consegue comandar e vencer as grandes batalhas da comunicação. Neste caso, precisou de umas quantas semanas de reflexão para perceber como havia de enlamear o programa, mas conseguiu por fim.


A primeira hipótese de trabalho usada pelo nosso estratega consistiu em escolher uma barqueira crapulosa, obsessivamente mitómana, galinácea e cheia de si, que dá pelo nome de Manuela Moura Guedes – uma personagem que consegue emporcalhar tudo o que esteja a menos de 300 metros de distância da sua pessoa. O nosso estratega, tendo à escolha, no panorama português, umas dezenas de pessoas de direita cordatas e inteligentes, teve a esperteza de optar por uma jornalista (?!) sem escrúpulo, uma mitómana temperada por enormes limitações de juízo, capaz de transformar qualquer programa num insulto à inteligência do espectador. MM Guedes é um portento que não hesita em debitar notícias do mais espantoso jaez: seja afirmando que existem 10 a 12 funcionários da Câmara Municipal de Lisboa por cada habitante (o que, à proporção da população actual de Lisboa, perfaz cerca de 6 milhões de funcionários, ou seja, aproximadamente toda a população activa de Portugal), seja defendendo mitos alheios sem qualquer base material de sustentação (como a falta de dinheiro para remunerar os funcionários públicos, o peso da população idosa no rendimento nacional, etc.). Contudo, se é certo que a presença de MM Guedes dava ao programa um toque de corrupção e desonestidade intelectual, o ridículo mentecapto das suas intervenções acabava por servir para abrilhantar as suas opositoras.

O problema que se punha ao estratega de comunicação era pois o de saber como, juntando apenas mais um elemento, conseguir cumular a massa crítica necessária para obter um efeito garantido de desprestígio, de inutilidade, de repugnância por parte do espectador. O golpe de génio aconteceu com a entrada em cena de Sofia Vala Rocha. A partir desse momento, já ninguém se pode salvar naquela barca, porque o efeito combinado das duas harpias – a Guedes e a Rocha – é arrasador. Uma, com suas descaradas mentiras e mitos, com seu elevado nível de estupidez argumentativa e de autoridade presuntiva, consegue enervar o mais paciente espectador. Outra, uma arguta especialista em meias verdades, domina a arte de sugerir apenas o estritamente necessário para que o espectador conclua em erro. Esta feliz combinação da cretinice mitómana com a argúcia viperina criou a massa crítica suficiente para arrasar com tudo o que esteja ao redor. Por mais que Isabel Moreira e Raquel Varela se esforcem por fazer uma avaliação honesta dos passageiros que se chegam à barca e que indagam do seu destino, o fluxo de corrupção intelectual e política debitado pelas outras duas barqueiras é suficiente para corroer os madeirames e afundar toda a gente no rio Letes.



Hoje, se António Gedeão reescrevesse o seu canto sobre Filipe II de Espanha – esse rei poderoso que tudo julgava possuir e dominar no mundo inteiro –, talvez já não dissesse «o que ele não tinha era um fecho éclair», mas sim «o que ele não tinha era um estratega de comunicação».


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