14/08/14

Notícias do futuro



Uma acesa polémica está a correr mundo, a propósito da divulgação de uma colecção de documentários, filmes e outros instrumentos didácticos sobre a vida dos humanos nos remotos séculos XIX-XXI. Embora estes filmes sejam por regra antecedidos de cautelosos avisos às sensibilidades mais frágeis, a polémica subsiste: deve-se, ou não, facultá-los a toda a gente, e até às crianças, segundo o princípio do livre e universal acesso à informação e do combate ao paternalismo bacoco? Deverá a sensibilidade infantil, necessariamente menos blindada que a do adulto, ser poupada?


Na verdade, nem mesmo os adultos conseguem olhar com indiferença para os relatos históricos dos séculos XIX-XXI. Muitos ficam de tal forma abalados com a barbaridade dos testemunhos exibidos na tela, que saem da sala de projecção ao fim de poucos minutos; não poucos correm para a casa de banho, numa urgência de vómito incontrolado.



Perante as imagens de milhares de seres humanos a correrem todos juntos, quais bovinos, à mesma hora, pela mesma vereda, em direcção a um destino invisível, compactando-se cegamente dentro de caixas de transporte desumanamente apetrechadas, muitos espectadores tiveram de pedir ajuda para serem retirados da sala, incapacitados de respirar por um ataque de ansiedade. Saem em braços, trôpegos de asfixia, e por isso são poupados à espantosa conclusão da cena: aqueles seres humanos sujeitavam-se à condição de gado maltratado, sem consciência nem espaço nem vida própria, em benefício de meia dúzia de barões. Mas, pior ainda, e felizmente aquele espectador não viu isto, porque está lá fora a receber oxigénio, o benefício dos barões não se traduz em comida, nem em mimos, nem nos prazeres da vida e do corpo, mas sim numa coisa chamada «lucro» que desconcertantemente não traz proveito a ninguém – apenas gera mais de si própria, como o feedback de um microfone e com igual incómodo para toda a gente.



Por mais bolinhas que se ponham no canto do ecrã, ninguém poderá estar preparado para ver essas cenas em que uma ínfima minoria de pessoas todo-poderosas (ou pelo menos assim parece) sonegava aos seus semelhantes cuidados médicos, nutrientes, medicamentos, água, energia e muitas outras coisas cuja falta provocava milhares de mortos todas as semanas. A mortífera carestia não resultava da inexistência dos bens necessários, como sucedera em épocas anteriores, ou porque não tivessem ainda sido inventados, ou porque não pudessem ser produzidos em quantidade suficiente para atender a todos os necessitados. Esses bens existiam, estavam disponíveis. Eram simplesmente sonegados em nome de dois princípios que fazem o espectador regressar a casa meditabundo, tentando entender o inexplicável; que o despertam a meio da noite, banhado em suores frios; que o induzem a consultar as bibliotecas universais, numa busca vã de explicações e interpretações – são eles 1) o princípio da protecção da «propriedade privada» (expressão idiomática coeva mais ou menos equivalente a «sonegação à colectividade») dos bens necessários ao colectivo e dos respectivos meios de produção e 2) o princípio do lucro.



Por mais que o espectador dos nossos tempos se esforce por descodificar o conceito de «lucro», essa estranha palavra de sabor arcaico resiste ao entendimento. Já é difícil ao espectador da actualidade entender outras eras e culturas da humanidade, como por exemplo o canibalismo, mas com algum esforço lá se consegue imaginar vagamente esse estranho e absurdo exercício de idealismo exotérico, ou animista, segundo o qual, ao comermos um objecto material (no caso vertente, o nosso semelhante), seria possível incorporar uma propriedade simbólica a ele associada. Porém, como compreender os bombardeamentos a hospitais, creches, escolas e habitações, em nome duma coisa chamada «propriedade da terra» (em certos casos particulares também designada «Estado» pelos coevos)? Como compreender as lutas e morticínios praticados por esses antepassados bárbaros, a fim de decidirem quem se apropria e quem domina uma determinada área da Terra, aleatoriamente delimitada num mapa?



Como compreender esse absurdo esforço de produção que os levava a fabricar produtos alimentares sem sabor, ou mesmo de mau sabor, ou até venenosos, se os métodos clássicos de produção alimentar bastavam para produzir comida para todos, comida boa, dessa que sustenta a vida e dá prazer aos sentidos? Como compreender os tortuosos métodos (designados à época por outra enigmática palavra arcaica, o marketing) destinados a obrigar toda a gente a consumir comida mal-saborosa e venenosa em vez das boas iguarias dispostas ali mesmo na caixa ao lado?



Como compreender a apropriação (=sonegação à colectividade) do código genético das sementes, ou da água da chuva, ou do fundo dos mares, ou … Não, nada disto é de fácil entendimento para os nossos espectadores. Muitos deles têm-se visto na necessidade de recorrer a especialistas do foro psiquiátrico, por começarem a sofrer uma estranha dissociação: como digerir a ideia de sermos descendentes directos daqueles animais bárbaros, de haver algo de comum entre nós e esses seres capazes de negarem um prato de sopa a alguém, apenas por esse alguém não possuir um curioso objecto-fetiche chamado «moeda», ou por não ter uma profissão estável e continuada? De facto, os hábitos desses antepassados remotos eram tão bárbaros, tão maléficos, que a sua simples evocação continua a ter, séculos depois, a capacidade de provocar a alienação tão típica dessa época remota, com as correspondentes dissociações mentais.



Temos por isso, todos nós, de ajudar a esclarecer a polémica em curso, ainda que ela pareça tonta e avessa aos mais elementares princípios de abertura universal do conhecimento: deve-se ou não facultar livre e publicamente os testemunhos históricos do barbarismo dos séculos XIX-XXI?



Uma polémica difícil, emotiva, contraditória, de cujo andamento nas diversas comunidades mundiais iremos dando notícias regulares.

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