30/08/14

EPL – a Esquizofrenia Política Lusa


Desde o topo das hierarquias políticas, partidárias e económicas até às bases militantes, grande parte dos agentes políticos portugueses sofre um desarranjo mental profundo: um desdobramento triplo, ou mesmo quádruplo, de personalidade. Chamemos a esta anomalia, para facilitar, «esquizofrenia política».

Por regra, o EPL (esquizofrénico político luso), seja ele de direita ou de esquerda, constrói uma imagem passadista do «povo»: vê-o como uma entidade ignorante, ingénua, que apenas ambiciona umas belas sardinhadas e um burrinho alimentado a gasolina, em vez de aveia. O EPL trata esta entidade imaginária com paternalismo, explicando-lhe as coisas como quem endoutrina uma criança com a idade mental de 4 ou 5 anos.

Em conformidade com esta imagem salazarenta do «povo», o EPL coloca os livros e outras fontes de conhecimento (estatísticas, estudos, tratados, etc.) na prateleira mais alta, mais inacessível, para que não fiquem ao alcance das crianças, que poderiam estragar-lhes a encadernação e quiçá adquirir ideias para as quais «não estão preparadas». Tal é o caso, entre muitos outros, da taxa de sindicalização, que os sindicatos resguardam cautelosamente da populaça.

Um dos desdobramentos de personalidade do EPL manifesta-se quando ele se imagina a falar perante «as massas», o «povo». Nesse instante ele cria uma multidão que o leva a adoptar um vocabulário, atitudes, posturas e maneirismos adequados às fictícias crianças a quem se dirige. É certo que o EPL – seja ele economista ou filósofo – tem um grau de instrução e qualificação equivalente, quando não inferior, à sua audiência, pelo menos nos casos em que esta é jovem. Mas este facto não é para aqui chamado, porque o EPL não está a dirigir-se à realidade, mas sim a uma ilusão, a seres imaginários e infantilizados que, partindo da doce praia mental do EPL, são enviados a povoar o mundo, como os forçados nos tempos das Descobertas.

O segundo desdobramento de personalidade que encontramos no EPL surge quando ele fala entre pares ou para as «autoridades». Estas «autoridades» que povoam o imaginário do EPL podem ser representadas por um conselho de ministros, por uma comunidade de catedráticos, por um congresso de investigadores científicos, etc. – pertencem ao mundo da superstrutura ideológica. Aqui o EPL transmuta-se noutro sujeito, adquire outro vocabulário, outras atitudes, outros trejeitos. A sua ilusão cria agora uma multidão de seres que tanto podem glorificá-lo como persegui-lo, torturá-lo, conspirar contra ele. Estas entidades imaginárias, ao fim e ao cabo, encontram uma espécie de correspondência material na realidade, uma vez que toda a práxis cria uma realidade própria.

Mas quando o nosso EPL se vê perante uma audiência estrangeira, longe do seu Portugal dos pequeninos, nasce um novo personagem. É fácil detectar nessa personalidade uma matriz cultural peculiar que leva o EPL a papaguear um conjunto de declarações que contraditou na sua própria terra-mãe – torna-se agora um sabujo que, abanando a cauda e buscando o pau, procura conquistar a recompensa e o afecto daqueles que imagina seus maiores, seus donos, seus protectores.

Finalmente, quando por acaso o EPL alcança um lugar de poder (seja ele uma chefia de secção, o secretariado de um partido ou a cabeceira do conselho de ministros), algo se passa dentro da sua cabeça – e desta feita não imagino o que seja – que o leva a comportar-se, agir, decidir e falar na pele de um novo personagem. Esta é a quarta e última (julgo eu) persona do EPL.

Quando Francisco Louçã afirma em março-2012 que «uma parte importantíssima da dívida devia ser cancelada porque simplesmente é dívida ilegítima, que não foi contraída pelos portugueses e resulta simplesmente do jogo financeiro e da acumulação de juros excessivos» (DN, 3-03-2012), e em 2014 subscreve com pompa e circunstância um projecto de pagamento integral da dívida pública e de salvação da banca nacional, amordaçando a palavra «ilegitimidade» num tabu inviolável, temos de ser pacientes e encarar tudo isso não como um conjunto de posições políticas contraditórias entre si, mas sim como um hiato na dose diária de medicação, com a consequente libertação dos seus alter egos.



Quando Ricardo Salgado acusa os portugueses de serem umas crianças travessas que não querem pagar impostos e depois, no momento seguinte, foge aos impostos, temos de ser compreensivos e reconhecer que estamos perante dois Ricardos Salgados distintos, cada qual lutando contra o outro. Apenas as limitações físicas da natureza e do universo (do nosso ponto de vista, claro está, não do ponto de vista de qualquer um dos dois Ricardos Salgados) obrigam a que ambas as declarações saiam da mesma boca. Aquela boca funciona apenas como o altifalante de um rádio, donde emanam declarações e personagens contraditórios entre si, todos nascidos de um éter qualquer. O mesmo se passa quando um Ricardo Salgado acusa o «povo» português de não querer trabalhar e preferir viver de subsídios, para logo a seguir o outro Ricardo Salgado ficar à espera de um subsídio que lhe salve o banco falido.

Tão-pouco o Coelho que prometeu, antes de chegar ao poder, jamais aumentar os impostos, é o mesmo Coelho que aumentou os impostos depois de chegar ao poder – trata-se de duas personagens distintas que adquiriram vida após um lapso na medicação diária.

O problema da síndrome de EPL – e por isso é tão importante ventilarmos o assunto – é que a loucura é mais contagiosa do que a sida ou o ébola. Um infectado de sida completamente estouvado pode contaminar umas dezenas de pessoas. Um esquizofrénico com acesso privilegiado aos meios de comunicação contagia milhões de pessoas.


Um exemplo simples do contágio a que todos estamos sujeitos é essa ideia ilusória, essa entidade mítica apelidada «povo». Por essas ruas e cafés, país afora, não é difícil tropeçarmos em cidadãos a afirmarem que «o povo acha isto, pensa aquilo, quer aqueloutro» – pimba, já foram contagiados. O «povo» (no sentido actual e demencial, não no sentido etimológico, evidentemente) é uma entidade imaginária, uma ilusão conceptual: representa uma miríade de coisas – os que trabalham e vivem miseravelmente, os que não conseguem arranjar emprego, os que são domésticos, os que vivem à custa do alheio, etc. E no entanto, na cabeça do EPL, «o povo» existe – não como umbra platónica, mas como coisa material e uniforme, já ali ao virar da esquina. Este imaginário tem uma força tal, que se torna quase-material por força das acções do EPL.

Sem dúvida os EPL deviam estes ser circunscritos – não, claro está, no sentido prisional, mas sim no sentido do isolamento mediático, a fim de proteger os concidadãos, com o mesmo cuidado meticuloso dedicado à prevenção da sida, da hepatite ou da gripe.

(corrigido de erros gramaticais e outros em 24-09-2014)

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