02/07/14

O degrau zero da militância política

Há um conjunto de regras indispensáveis à organização da militância política de base que se mantêm imutáveis ao longo dos tempos. Podem as suas formas de aplicação variar em função do meio cultural ou da época, mas na essência elas são, digamos assim, uma constante do universo, como a força da gravidade ou a velocidade da luz.

fonte: «Acervo Arquivístico da União Operária», 

De que estamos aqui a falar, quando falamos de militância na base? É claro que não me refiro a métodos de organização partidária (isso não é base, é superstrutura), nem a estruturas sindicais complexas (idem), nem a intervenções na comunicação social (idem), nem a trabalhos teóricos ou académicos (idem), nem à intervenção nas instituições de poder e do Estado (idem). Refiro-me à acção política directa e organizada nos locais de trabalho e seus espaços adjacentes, nos bairros, nas escolas, enfim, onde quer que se encontrem directamente e sem intermediação as pessoas e a expressão material, objectiva, das relações sociais.

A constante universal a que me refiro no primeiro parágrafo contém na realidade dois factores: aquilo que se oferece e aquilo que se exige. [Em jeito de nota abreviada, alerto o leitor mais propenso a papar lugares-comuns que o significado da palavra «oferta» não é necessariamente mercantilista – não esqueçamos que antes do mercantilismo já existiam os conceitos de oferenda e de generosidade. Ao mesmo leitor facilmente atraído pela mundividência burguesa recordo ainda que em todas as relações sociais é possível exigir contrapartidas políticas mútuas, ou seja, que o conceito de «exigir» também existe fora da noção de dever moral.]

Comecemos pela questão da oferta. No que diz respeito à acção e organização política na base, só existe um método capaz de garantir no curto prazo a congregação das pessoas: a oferta de serviços. Por mais voltas que se dêem, não existe outra maneira de fazer a coisa – para chamar as pessoas a uma associação de bairro, a uma colectividade, a um grupo cultural, ou se oferece um conjunto de serviços de que a população alvo carece, ou a iniciativa ficará reduzida a uma dúzia de militantes voluntariosos; e mesmo estes, com o correr do tempo, reduzir-se-ão por sua vez a meia dúzia de militantes empedernidos mas, infelizmente, um pouco autistas, incapazes de comunicar com o universo humano que os envolve. A ideia de que seja possível congregar e mobilizar as pessoas simplesmente através de um discurso que apela à sua consciência política é um infantilismo que inverte a causa e o efeito: não é possível apelar a uma coisa que ainda não existe, que carece de ser gerada.

O que possam ser os serviços em causa varia muito de época para época. Nos anos 1975-1976, quando actuei num certo bairro de lata, a oferta necessária era simples e evidente: tratava-se de um bairro composto por alentejanos, trasmontanos e ciganos – uma população muito diversa na sua cultura e nos seus interesses, mas que tinha um problema comum: uma elevada taxa de analfabetismo que impedia as pessoas de obterem certas vantagens pessoais e profissionais, além de as estigmatizar socialmente. Aí estava a porta de entrada óbvia – aulas de alfabetização – e foi por aí que iniciei uma actividade de organização local. Poucas semanas depois, estava constituída uma assembleia de bairro e uma comissão de moradores que iniciaram uma actividade de cariz marcadamente político pelo direito à habitação. É claro que hoje em dia a alfabetização não é uma necessidade comum; é necessário perceber, caso a caso, onde está a tal porta de entrada. E pode acontecer que as necessidades em causa sejam tão sofisticadas, por comparação com aqueles tempos «simples», que se torne difícil encontrar militantes especializados e disponíveis para abrir a «porta» – aconselhamento jurídico, formação técnica avançada, etc.

Por outro lado, para suscitar uma consciência política e colectiva não basta oferecer os serviços de que uma população carece com urgência. Entra aqui em jogo o segundo factor da nossa constante universal: é necessário fazer ver às pessoas que também elas têm de oferecer algo em contrapartida, se querem beneficiar dos serviços oferecidos. Se assim não for (mantenhamos presente que, em princípio, estamos numa fase anterior à sedimentação duma consciência política e colectiva), as pessoas tenderão a comportar-se nos moldes da cultura dominante – depois de usufruírem os benefícios de que careciam individualmente, desaparecem. É necessário, portanto, encontrar mecanismos que as obriguem a permanecer, a oferecer algo em troca permanente (algo com sentido colectivo, entenda-se). Assim, por exemplo, se um professor de matemática com situação profissional precária beneficiar de ajuda jurídica numa associação de bairro, terá em contrapartida de comprometer-se a dar explicações de matemática no espaço colectivo, ou a fazer qualquer outra coisa com sentido colectivo, auto-organizativo e de ajuda mútua. A imposição desta regra tem de ser implacável, por muito que isso custe aos resquícios de consciência pequeno-burguesa e moralista dos membros da associação – um elemento recém-chegado que desleixa as suas oferendas ao colectivo é um elemento que deve deixar imediatamente de beneficiar dos serviços propostos pela associação. Essa é a única forma de gerar uma consciência política colectiva – através de acções materiais em ambiente colectivo, e não através de discursos teóricos ou da oferta de uma bela biblioteca política. Em suma: na ausência de um compromisso colectivo de aceitação obrigatória e mútua, todas as acções redundam em atitudes caritativas politicamente inúteis.

Este é o bê-á-bá da militância na base social. É a tabuada sobre a qual se constroem todas as outras formas sofisticadas de militância e acção política. Implica consciência mútua, entreajuda e auto-organização; implica negociação e compromisso colectivo – e estas duas coisas são, em si mesmas, uma escola – uma escola onde se aprende o princípio clássico de repartir segundo as necessidades e as capacidades de cada um, de forma autónoma, autoorganizada, independente dos poderes públicos e da cultura dominante. Espantosamente, tenho verificado que este bê-à-bá é completamente desconhecido da maioria dos jovens militantes e que mesmo os da velha guarda ou não o sabem ou já o esqueceram. Em termos simples: a «iliteracia» da militância política é hoje em dia aflitivamente elevada – a acção política de base passou a ser confundida com arregimentação e propaganda.

Ainda recentemente assisti a uma reunião de um colectivo que se propõe criar uma associação para despertar as consciências e as militâncias. Nessa reunião foram lançadas para cima da mesa umas quantas ideias, algumas delas engenhosas, outras divertidas, que vão desde a oferta de explicações e aconselhamento jurídico até sessões de cinema, uma biblioteca, palestras, jantares e conversas de tasca à volta duma cerveja – mas nem uma só palavra foi dita acerca dos mecanismos capazes de gerar compromisso permanente a longo prazo. Ora o compromisso é a base de toda a militância – como pode alguém imaginar a arregimentação de novos militantes fora duma prática e de um ensino do compromisso colectivo? Fora do exercício de base, material, de contrapartidas oferecidas ao colectivo? Tudo isto leva a crer: mais uma iniciativa votada ao fracasso.

A ideia de que há certas constantes imutáveis (neste caso no que diz respeito à acção política) pode ser enervante para o espírito «inovador» e apressado a que nos habituaram a sociedade de consumo e o Facebook – mas é incontornável.

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