Os contras eram um «empreendedor» chamado Miguel
Gonçalves (um descarado furão à vista desarmada) e um jurista
chamado Rodrigo Adão da Fonseca com tiques neofascistas exibidos de
forma bastante cândida. No campo oposto, Raquel Varela,
historiadora, com uma capacidade argumentativa e um acervo de
informação objectiva invulgares; e um empresário benévolo, Pedro
Carmo Costa. É impossível não suspeitar que a configuração desta
edição do programa tenha sido propositadamente desequilibrada em
favor da defesa dos trabalhadores deste país e da destruição da
imagem dos «empreendedores» furões.
Comecemos por notar que a palavra tradicional para
quem monta negócios é «empresário» e que o termo «empreendedor»
é uma manobra de novilíngua, uma tentativa de retirar a carga
exploradora ligada à ideia do negócio. Seja como for, a manobra
é inútil – ambas as palavras têm a mesma etimologia, prehendere,
que é gesto
da pata do gato
ao caçar o rato. Temos portanto em
português moderno dois
significantes para o mesmo significado. A diferença reside
na conotação: o empresário
herda uma imagem tradicional de bem-estar, poder – primeiro
económico, depois político – e
seriedade ou malvadez, consoante as épocas e os contextos políticos; o empreendedor tem no
dicionário a conotação de «furão», e com isto está tudo dito.
Na
sua «inocência»
um pouco burra, Miguel Gonçalves escolheu ser apresentado como
empreendedor, enquanto os seus congéneres
escolheram ser apresentados como empresários, e recorreu 347 vezes à palavra «oportunidade».
O debate decorreu
como seria de esperar: o que já era claro continuou iluminado, ou
seja, se centenas de milhar de pessoas se vão embora do país não é por terem tido
a infelicidade de se enganarem
no autocarro ou na estrada que tomaram, é porque não encontram
aqui nem condições de vida nem razões de esperança. Adiante.
Já
que estamos nisto, já que a equipa do «Prós
e Contras»
teve a ideia manifesta e posta em palco de conotar as dificuldades de construir uma
vida em Portugal com uma grande parte do empresariado, aproveito para
trazer à baila um dos
últimos tabus
da cultura contemporânea: as
origens de grande parte dos «empreendedores».
Este é um tabu que nem as figuras de esquerda, nem mesmo
as que se dizem mais
revolucionárias, ousam
aflorar.
As
origens dos empreendedores
são
invariavelmente apresentadas
na sua
versão mitológica, sem qualquer relação com a realidade, como
aconteceu neste «Prós e Contras» a propósito de Belmiro de
Azevedo, insistentemente louvado pelos
seus admiradores como um
homem «vindo
de origens humildes»;
nas palavras dos admiradores, um homem que se veste mal e come pão
com azeite e alho como qualquer ceifeira sem dinheiro para as
proteínas; alguém que teria
amealhado uma
incalculável fortuna à
custa de génio.
Ora génio é, na
origem, um espírito que acompanha e protege uma pessoa, acabando com
a evolução semântica
por designar o brilhantismo de espírito da própria pessoa. Sabemos
que o génio produz maravilhosas obras de arte, invenções
tecnológicas e descobertas científicas, mundivisões e novas
ideias sociais, e
em todos esses casos não é difícil compreender a relação entre
um espírito genial
e o seu produto. Mas que
possa o génio produzir
dinheiro a rodos e fabricar
multimilionários, isso
deixa-nos perplexos. Como é possível o espírito transformar-se em
metal sonante? Será milagre divino, como
aquele dos pães e do vinho?
Nenhuma pessoa no
perfeito uso das suas capacidades mentais pode acreditar num conto de
fadas segundo o qual alguém que trabalha por um ordenado de miséria,
carregado de fome e sem paz
de espírito, consegue
amealhar, ao longo de uma minúscula fracção da
sua vida, o necessário para
se transformar num multimilionário, enquanto os seus antigos
camaradas de miséria, por serem burros, supõe-se, continuam a
passar fome e a chegar ao fim do mês não com um saldo positivo
suficiente para comprar milhares de acções na Bolsa, mas com um
saldo negativo que os arrastará para uma situação cada vez mais
miserável, mais esfomeada e mais dependente. Aí
está um caso em que não é
necessário ser um génio para perceber que estamos
perante uma história
da carochinha.
Conhecer
realmente, de facto,
as origens da fortuna e da actividade de um empresário «de
origens humildes» (ou seja,
excluamos desde
já todos
os que herdaram,
para não ofender ninguém desnecessariamente) é
coisa muito
rara e extremamente difícil.
Por acaso, ao
longo da minha vida, aconteceu-me tropeçar nalgumas provas
escondidas sobre a origem de
certos homens de negócio «de origens humildes», à la
Belmiro (personagem cujas
origens e história, aviso já, não conheço).
Escusado seria dizer o que tinha de ser óbvio desde o início: são
sempre histórias tenebrosas – umas mais, outras menos, variando da
vigarice ao assassínio.
À medida que se
eleva a fortuna e o poder, estas
figuras vão aprendendo a
criar uma capa de
respeitabilidade; mas nas
primeiras fases é frequente o uso imoderado
da linguagem
e da brutalidade, umas vezes
directa, outras vezes por intermédio de capangas e facínoras. Ainda
assim, mesmo depois de atingida a fase de maior poder e sofisticação,
quando em discreta situação de intimidade e longe dos olhares do
mundo continuam a não se dar ao trabalho de disfarçar a ganância
e a brutalidade extremas.
Por
muito previsíveis que fossem estas origens em numerosos casos, uma
coisa é certa: nada como dar de caras com a realidade dos factos
para convencer o espírito. A
título de exemplo sobre os métodos de construção das grandes
fortunas, ver «Procès d'un homme examplaire» e «Cronologia:
Jacques de Groote no FMI, no Banco Mundial, no Congo, no Ruanda, na
República Checa e nos tribunais suíços», ambos de Eric
Toussaint.
Que a comunicação
social dominante, toda ela propriedade dos poderosos,
alimente a mitologia, não espanta. O
que é desconcertante,
e que mereceria um estudo sério na área das ciências sociais e do
comportamento, é que a generalidade das pessoas humildes
alimente esta mitologia dos
poderosos «vindos do nada».
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