18/03/14

O crime organizado em alta escala

Em 2011, um pouco mais de 1/3 da população portuguesa tinha nascido antes de 1960. Deve portanto recordar-se duma época, que vai pelo menos até finais dessa década, em que os trabalhadores recebiam o salário na mão, em dinheiro vivo, e o guardavam em casa numa lata, numa gaveta ou debaixo do colchão.
Com a crise económica mundial da década de 1970, as coisas mudam pouco a pouco de figura. As épocas de crise são muito propícias à reflexão sobre as condições políticas e sociais, puxam à invenção de novas soluções. Nesse aspecto, porém, fica-me sempre a impressão de que, tirando situações especiais (como foi o caso em Portugal, de 1974 a 1976), o capital leva sempre a palma. É natural que assim seja, já que a generalidade dos capitalistas, ainda que muito chorem e lastimem a crise económica, sofrem menos física e psicologicamente, não passam fome (refiro-me à verdadeira, não à metafórica), não têm de gastar todo o seu tempo de reflexão a congeminar formas de subsistir; por maior que seja a crise, têm dinheiro para pagar a equipas de pensadores, para contratar estudiosos, mobilizar universidades inteiras e contratar umas quantas mentes brilhantes.


Na década de 1970 o que aconteceu foi que os bancos olharam para a distribuição nacional dos rendimentos e viram que nos países europeus, incluindo Portugal, os salários representavam 48 a 70% do PIB. Ali estava uma batolada de dinheiro a que valia a pena tentar deitar a mão! Mas como? A solução encontrada consistiu em, com oferta de algumas facilidades às empresas, convencê-las a deixar de pagar os salários em mão e passar a fazê-lo através da banca. Para os trabalhadores, a solução causou alguns incómodos de adaptação inicial, mas a final a coisa pegou – e parecia prática, e inocente, visto que o dinheiro ficava seguro e até podia render juros, se o trabalhador estivesse em condições de amealhar uns modestos cobres. Grande parte dos trabalhadores passou rapidamente a apreciar esse acto um pouco parolo e jactante de exibir o canhoto do livro de cheques.

A partir de 1980, a entrada em cena de Bush, Thatcher e Cavaco Silva assinala uma nova era: a quantidade de serviços oferecida pelos bancos aos simples mortais, ao soldador, ao trolha e até à senhora da limpeza, passou a mimetizar as invejadas oportunidades oferecidas ao patrão: crédito aparentemente a rodos.
Ao mesmo tempo, porém, algumas coisas começam a desaparecer. Evaporam-se sem alarde. Só ao cabo de algumas décadas as pessoas se deram conta da falta que fazia, por exemplo, a velha ética bancária e contabilística – mas então era já demasiado tarde para remediar. Recordo nitidamente que, logo no início da mudança, o banco privado onde eu 10 anos antes tinha aberto a minha primeira conta para receber o meu primeiro salário me enviou uma carta cortês onde me avisava que tinha mudado o alvo, que procurava agora especializar-se em servir clientes com alguma dinâmica de investimento, e que eu devia ponderar se queria continuar ou sair, pois os clientes sem «dinâmica» para o investimento sofreriam custos. Saí. Mas nessa época, apesar de tudo, ainda me foi dado aviso prévio e opção.

Em 2011, 1/3 da população não tinha idade suficiente para saber como funcionavam as coisas antes da era neoliberal – nomeadamente os bancos comerciais e a conta-ordenado. É uma população que já nasceu com os bancos que temos hoje. Talvez por isso, por lhes parecer que o funcionamento bancário que sempre conheceram faz parte da ordem natural do Universo, lhes seja tão difícil perceber a que ponto os bancos são objectivamente associações de crime organizado nas mais diversas áreas e em variados graus. Do assassínio ao simples desvio de dinheiros dos depositantes, da fraude de alta finança à simples cobrança do «serviço» duma conta corrente, da falsificação de documentos à elaboração de contratos que nenhum vulgar depositante poderá jamais entender, da lavagem de dinheiro dos cartéis da droga à constituição de departamentos especializados em organizar a fraude e a evasão fiscal das empresas, da participação em genocídios nos países do Terceiro Mundo à manipulação das taxas Libor, Euribor e outras – não há praticamente nenhum ramo do crime organizado em que os bancos e as empresas financeiras não sejam campeões. 

Hoje o banqueiro, ao passar pela estátua da Justiça, ordena-lhe que olhe para o outro lado – e ela olha, de facto, como se comprova pelo facto de nenhum banqueiro ter sido condenado a pena de prisão, por maiores que sejam os seus crimes e fraudes, de nenhum banco ter perdido a licença.1 Olham para o lado os juízes, assobiam para o ar os políticos – uns por interesse corrupto, outros por simples tontice –, passam de largo os jornalistas, fazem vénia os humildes mortais.

Às portas da crise de 2007-2008, os bancos privados, e até bancos como a CGD, já tinham inventado uma panóplia de «pacotes» de investimento duma variedade imensa, mas todos eles com uma coisa em comum: tratava-se de tramóias para sacar o máximo possível de dinheiro ao modesto depositante, em particular a idosos reformados incapazes de analisar um contrato de 40 páginas. Por exemplo a CGD, onde a maioria dos reformados da função pública guardava a pensão e as magras economias, fabricou uma modalidade fraudulenta de investimento que consistia em aplicar (em proveito próprio) o dinheiro das poupanças a um juro muito mais sedutor para o depositante do que o da conta a prazo; o problema é que algures no meio do contrato entrava uma fórmula incompreensível (mesmo para economistas e gestores, conforme pude comprovar) que afinal de contas se resumia a isto: ao juro havia que subtrair a taxa Euribor corrente. Quando o stock de pacotes já tinha sido todo vendido, escusado será dizer que a taxa Euribor subiu à estratosfera; os juros transformaram-se misteriosamente em juros negativos e o dinheiro começou a desaparecer das contas, com destino a parte incerta. Ora, uma vez que a taxa Euribor tem a ver com a taxa de juro a que os bancos emprestam dinheiro uns aos outros, seria de esperar que a fórmula funcionasse a favor do depositante (afinal de contas, uma conta bancária é um empréstimo ao banco, que assim pode investir dinheiro que não tem em proveito próprio) e que, funcionando contra o depositante, deveria dar direito a processo em tribunal por parte autoridade fiscalizadora. Escusado seria dizer que nada de mal aconteceu à CGD.

Os usurários, já o sabemos vai para mais de 2000 anos, nunca foram gente recomendável. A escalada criminosa dos bancos e outras empresas financeiras, porém, atingiu nas últimas décadas uma dimensão, uma intensidade e um peso sem precedentes na história da humanidade. Isto deve-se em grande parte ao afrouxamento das leis e das entidades fiscalizadoras da actividade bancária e financeira, que lhes permitem um crescimento de escala sem limites e a aglomeração de diferentes tipos de actividades financeiras e comerciais (precisamente o que lhes foi vedado por altura da crise de 1929, para impedir que ela entrasse em espiral), nomeadamente o açambarcamento dos mercados de matérias-primas e produtos alimentares2 (não só os de hoje, mas também os futuros), da produção de energia, da exploração dos recursos naturais (água e minérios), tornando-se Deus na terra3

Quando os bens básicos ficam todos nas mãos de um grupo restrito de pessoas ou instituições, só restam dois caminhos possíveis para o resto da humanidade, e entre esses dois caminhos não há qualquer espécie de alternativa mediana: ou sujeitar-se integralmente para não morrer de fome, ou esmagar definitivamente os detentores desses meios de subsistência.


notas:
1 Há três excepções a nível mundial: os tribunais islandeses condenaram três banqueiros a penas de prisão (ver Financial Times, «Iceland premier repels Icesave lawsuit», 12-02-2014). Os restantes casos de pena aplicada não são de banqueiros ou gerentes, mas sim de paus-mandados que serviram de bodes expiatórios.
2 Para um exame detalhado da relação entre bancos, matérias-primas e soberania alimentar, ver Eric Toussaint, «Os bancos especulam com as matérias-primas e os alimentos», 17-03-2014.
3 Palavras de Lloyd Blankfein, patrão do Goldman Sachs – ver The Wall Street Journal, «Goldman Sachs Blankfein: Doing Gods work», 9-11-2009, http://blogs.wsj.com/marketbeat/2009/11/09/goldman-sachs-blankfein-on-banking-doing-gods-work/

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