Com a crise económica mundial da década de 1970,
as coisas mudam pouco a pouco de figura. As épocas de crise são
muito propícias à reflexão sobre as condições políticas e
sociais, puxam à invenção de novas soluções. Nesse aspecto,
porém, fica-me sempre a impressão de que, tirando situações
especiais (como foi o caso em Portugal, de 1974 a 1976), o capital
leva sempre a palma. É natural que assim seja, já que a
generalidade dos capitalistas, ainda que muito chorem e lastimem a
crise económica, sofrem menos física e psicologicamente, não
passam fome (refiro-me à verdadeira, não à metafórica), não têm
de gastar todo o seu tempo de reflexão a congeminar formas de
subsistir; por maior que seja a crise, têm dinheiro para pagar a
equipas de pensadores, para contratar estudiosos, mobilizar
universidades inteiras e contratar umas quantas mentes brilhantes.
Na década de 1970 o que aconteceu foi que os
bancos olharam para a distribuição nacional dos rendimentos e viram
que nos países europeus, incluindo Portugal, os salários
representavam 48 a 70% do PIB. Ali estava uma batolada de dinheiro a
que valia a pena tentar deitar a mão! Mas como? A solução
encontrada consistiu em, com oferta de algumas facilidades às
empresas, convencê-las a deixar de pagar os salários em mão e
passar a fazê-lo através da banca. Para os trabalhadores, a solução
causou alguns incómodos de adaptação inicial, mas a final a coisa
pegou – e parecia prática, e inocente, visto que o dinheiro ficava
seguro e até podia render juros, se o trabalhador estivesse em
condições de amealhar uns modestos cobres. Grande parte dos
trabalhadores passou rapidamente a apreciar esse acto um pouco parolo
e jactante de exibir o canhoto do livro de cheques.
A partir de 1980, a entrada em cena de Bush,
Thatcher e Cavaco Silva assinala uma nova era: a quantidade de
serviços oferecida pelos bancos aos simples mortais, ao soldador, ao
trolha e até à senhora da limpeza, passou a mimetizar as invejadas
oportunidades oferecidas ao patrão: crédito aparentemente a rodos.
Ao mesmo tempo, porém, algumas coisas começam a
desaparecer. Evaporam-se sem alarde. Só ao cabo de algumas décadas
as pessoas se deram conta da falta que fazia, por exemplo, a velha
ética bancária e contabilística – mas então era já demasiado
tarde para remediar. Recordo nitidamente que, logo no início da
mudança, o banco privado onde eu 10 anos antes tinha aberto a minha
primeira conta para receber o meu primeiro salário me enviou uma
carta cortês onde me avisava que tinha mudado o alvo, que procurava
agora especializar-se em servir clientes com alguma dinâmica de
investimento, e que eu devia ponderar se queria continuar ou sair,
pois os clientes sem «dinâmica» para o investimento sofreriam
custos. Saí. Mas nessa época, apesar de tudo, ainda me foi dado
aviso prévio e opção.
Em 2011, 1/3 da população não tinha idade
suficiente para saber como funcionavam as coisas antes da era
neoliberal – nomeadamente os bancos comerciais e a conta-ordenado.
É uma população que já nasceu com os bancos que temos hoje.
Talvez por isso, por lhes parecer que o funcionamento bancário que
sempre conheceram faz parte da ordem natural do Universo, lhes seja
tão difícil perceber a que ponto os bancos são objectivamente
associações de crime organizado nas mais diversas áreas e em
variados graus. Do assassínio ao simples desvio de dinheiros dos
depositantes, da fraude de alta finança à simples cobrança do
«serviço» duma conta corrente, da falsificação de documentos à
elaboração de contratos que nenhum vulgar depositante poderá
jamais entender, da lavagem de dinheiro dos cartéis da droga à
constituição de departamentos especializados em organizar a fraude
e a evasão fiscal das empresas, da participação em genocídios nos
países do Terceiro Mundo à manipulação das taxas Libor, Euribor e
outras – não há praticamente nenhum ramo do crime organizado em
que os bancos e as empresas financeiras não sejam campeões.
Hoje o banqueiro, ao passar pela estátua da
Justiça, ordena-lhe que olhe para o outro lado – e ela olha, de
facto, como se comprova pelo facto de nenhum banqueiro ter sido
condenado a pena de prisão, por maiores que sejam os seus crimes e
fraudes, de nenhum banco ter perdido a licença.1
Olham para o lado os juízes, assobiam para o ar os políticos – uns
por interesse corrupto, outros por simples tontice –, passam
de largo os jornalistas, fazem vénia os humildes mortais.
Às portas da crise de 2007-2008, os bancos
privados, e até bancos como a CGD, já tinham inventado uma panóplia
de «pacotes» de investimento duma variedade imensa, mas todos eles
com uma coisa em comum: tratava-se de tramóias para sacar o máximo
possível de dinheiro ao modesto depositante, em particular a idosos
reformados incapazes de analisar um contrato de 40 páginas. Por
exemplo a CGD, onde a maioria dos reformados da função pública
guardava a pensão e as magras economias, fabricou uma modalidade
fraudulenta de investimento que consistia em aplicar (em proveito
próprio) o dinheiro das poupanças a um juro muito mais sedutor para
o depositante do que o da conta a prazo; o problema é que algures no
meio do contrato entrava uma fórmula incompreensível (mesmo para
economistas e gestores, conforme pude comprovar) que afinal de contas
se resumia a isto: ao juro havia que subtrair a taxa Euribor
corrente. Quando o stock de pacotes já tinha sido todo
vendido, escusado será dizer que a taxa Euribor subiu à
estratosfera; os juros transformaram-se misteriosamente em juros
negativos e o dinheiro começou a desaparecer das contas, com destino
a parte incerta. Ora, uma vez que a taxa Euribor tem a ver com a taxa
de juro a que os bancos emprestam dinheiro uns aos outros, seria de
esperar que a fórmula funcionasse a favor do depositante (afinal de
contas, uma conta bancária é um empréstimo ao banco, que assim
pode investir dinheiro que não tem em proveito próprio) e que,
funcionando contra o depositante, deveria dar direito a processo em
tribunal por parte autoridade fiscalizadora. Escusado seria dizer que
nada de mal aconteceu à CGD.
Os usurários, já o sabemos vai para mais de 2000
anos, nunca foram gente recomendável. A escalada criminosa dos
bancos e outras empresas financeiras, porém, atingiu nas últimas
décadas uma dimensão, uma intensidade e um peso sem precedentes na
história da humanidade. Isto deve-se em grande parte ao afrouxamento
das leis e das entidades fiscalizadoras da actividade bancária e
financeira, que lhes permitem um crescimento de escala sem limites e
a aglomeração de diferentes tipos de actividades financeiras e
comerciais (precisamente o que lhes foi vedado por altura da crise de
1929, para impedir que ela entrasse em espiral), nomeadamente o
açambarcamento dos mercados de matérias-primas e produtos
alimentares2
(não só os de hoje, mas também os futuros), da produção de
energia, da exploração dos recursos naturais (água e minérios),
tornando-se Deus na terra3.
Quando os bens básicos ficam todos nas mãos de
um grupo restrito de pessoas ou instituições, só restam dois
caminhos possíveis para o resto da humanidade, e entre esses dois
caminhos não há qualquer espécie de alternativa mediana: ou
sujeitar-se integralmente para não morrer de fome, ou esmagar
definitivamente os detentores desses meios de subsistência.
notas:
1 Há
três excepções a nível mundial: os tribunais islandeses
condenaram três banqueiros a penas de prisão (ver Financial
Times, «Iceland premier repels Icesave lawsuit», 12-02-2014).
Os restantes casos de pena aplicada não são de banqueiros ou
gerentes, mas sim de paus-mandados que serviram de bodes
expiatórios.
2 Para
um exame detalhado da relação entre bancos, matérias-primas e
soberania alimentar, ver Eric Toussaint, «Os
bancos especulam com as matérias-primas e os alimentos»,
17-03-2014.
3 Palavras
de Lloyd Blankfein, patrão do Goldman Sachs – ver The Wall
Street Journal, «Goldman Sachs Blankfein: Doing Gods work»,
9-11-2009,
http://blogs.wsj.com/marketbeat/2009/11/09/goldman-sachs-blankfein-on-banking-doing-gods-work/
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