- A ideia de que vivemos numa sociedade livre, e de que a liberdade pode ser definida em função da liberdade de votar, de ser eleitor e de pedir responsabilidades aos eleitos (no acto eleitoral seguinte, supõe-se).
- A ideia de que todo o cidadão é culpado até prova em contrário.
- A ideia de que o trabalho é, e deve continuar a ser, um importante factor de socialização, aprendizagem e disciplinamento social.
Sobre o primeiro ponto não vou deter-me desta
feita. Nos dois pontos seguintes reside a causa principal do meu
enojamento, e é aí que quero centrar-me.
Duas formas de abordar os temas sociais e políticos
Existe uma forma de abordar os problemas sociais e
respectivas soluções que consiste em mascarar e emudecer as
questões de fundo, entrando imediatamente nas minudências da
execução e da aplicação prática. Esta solução oferece uma
vantagem: a todo o instante temos à mão um apetrecho expedito e
útil ao poder executivo. É claro, porém, que nenhum apetrecho, lá
por calar questões de princípio, pode fugir a elas – e portanto,
com toda a probabilidade, o que esse apetrecho está a fazer é
perpetuar tacitamente os princípios e o regime vigentes,
proporcionando-lhes contudo uma nova máscara.
Outra forma de abordar os problemas sociais e
políticos consiste em pôr à cabeça da discussão as questões
gerais de princípio, sem cuidar de desenhar as minudências da vida,
sem querer abrir processos de intenção aos vindouros, e deixar que
esses princípios se corporizem naturalmente em linhas de orientação
prática. Sobre esta última fase, seus perigos, correcção e
incorrecção dos seus métodos muito mais haveria a dizer, mas como
isto não pretende ser um manual de militância organizada, passo
adiante.
Mário Branco coloca no seu artigo a seguinte
questão: quando entregues a si próprios, os desempregados tornam-se
uns irresponsáveis sociais, bandidos, assaltantes de supermercados,
pais e mães ausentes, deixam de ajudar as velhinhas a atravessar a
rua, dão mau aspecto às nossas belas ruas da nossa bela
arquitectura alicerçada nas nossas belas propriedades privadas do
solo urbano, e se lhes dermos um subsídio de sobrevivência isso
então é o fim do mundo, nunca mais na vida querem trabalhar,
sentam-se no chão da rua a fazer pouco de quem passa, gastam o
dinheiro todo que lhes demos em álcool e drogas em vez de comprarem
casinhas e telemóveis, e quando nós quisermos comprar uma casinha e
um telemóvel vai ser um desatino, um regresso à idade da pedra,
porque já não haverá casinhas e telemóveis, porque os madraços
dos desempregados subsidiados já não querem produzi-las. É caso
para perguntar se o artigo de Mário Branco não terá por acaso sido
encomendado por Paulo Portas.
Para defender a sua tese calamitosa, Mário Branco
vale-se de uns quantos estudos académicos ou de campo (suponho eu,
mas tenho de confessar, enquanto é tempo, que não fui consultar a
bibliografia fornecida). É claro que qualquer pessoa minimamente
informada sabe que é possível apresentar outros tantos estudos e
experiências de campo a contrario,
onde se prova que n+1
indigentes se tornaram excelentes pessoas e
cidadãos (segundo os moldes
sociais, ideológicos e económicos dominantes, quero eu dizer)
quando lhes foi posto na mão
um rendimento mínimo sem condições, e
portanto tudo isto resulta numa conversa fútil, interminável,
inconclusiva
e sem qualquer interesse.
Sejamos honestos:
de todo não é possível provar que em qualquer época, em qualquer
país e em qualquer cultura um indivíduo sujeito a desemprego
prolongado, com ou sem
subsídio, se torna um
indivíduo decadente, ou mesmo um sociopata. Aliás,
querer reduzir
o comportamento e a
personalidade cada pessoa
concreta a
um caso geral uniforme é pouco menos que fascizante.
A questão
essencial perante a qual nos deparamos aqui é a seguinte: por detrás
das afirmações de Mário Branco existe um princípio fundamental
tácito: toda a gente é
culpada até prova em contrário. O
meu pressuposto de partida é o oposto:
toda a gente é inocente até prova em contrário. E aqui torna-se
claro até que ponto eu e Mário Branco nos
situamos em lados opostos da
barricada – entre outras
coisas, é para mapear
posições que servem os grandes princípios gerais.
Olhemos com mais
atenção para esta declaração – «toda a gente é inocente até
prova em contrário». Ela define os factores de culpabilidade e
inocência, para qualquer época, região, regime ou circunstância?
– não, é uma declaração genérica; permite, quaisquer que sejam
os usos e costumes locais, quaisquer que sejam os usos e abusos do
poder, manter uma posição genérica de princípio: a
priori sou inocente, seja lá o
que for o carácter da
culpa e da
inocência na sociedade em que me insiro. É culpável hoje
manifestar afecto para com as crianças? – pois bem, serei inocente
dessa culpa até prova em contrário. É culpável amanhã não
mostrar afecto para com as crianças? – serei inocente até prova
em contrário. No meu sistema
de princípios, as
circunstâncias mudam, os princípios mantêm-se. Os
princípios e os direitos não são negociáveis, como explico no meu
post anterior, e essa é a
única
segurança ao nosso dispor, a única
coisa que nos pode salvar
dos erros pontuais e
objectivos
que possamos cometer. É
indesculpável que um docente académico, carregado que nem uma mula
de cadeiras metodológicas e obras publicadas, não entenda isto.
Olhemos agora
para a declaração oposta – «toda a gente é culpada até
prova em contrário». Neste caso tão-pouco
importa o carácter
específico da culpa e da
inocência, pois trata-se igualmente duma declaração genérica de
princípio. Se for culpável não ter um trabalho, sou culpado a
priori, devendo apresentar prova
em contrário quando e sempre que necessário. Se for culpável
trabalhar numa empresa que polui as toalhas freáticas, sou culpado a
priori, devendo apresentar prova
de que a empresa onde trabalho não polui as águas. Por outro lado,
se eu não trabalhar, encontrar-me-ei exactamente na mesma situação
– sou considerado culpado a priori.
Imagino que Mário Branco, na estreiteza planar
de um trabalhador esforçado que dedica certamente 12 a 14 horas por
dia à investigação académica,
nem sonhe que, no caso de alguém
com carácter semelhante ao meu, o
princípio da culpa a priori
pode ser
um grande incentivo
ao não trabalho, visto que a carga de trabalhos e conflitos sociais
resultante de ambos os casos (trabalhar ou não trabalhar), do
ponto de vista de um cidadão politicamente consciente,
é exactamente a mesma.
O trabalho é uma disciplina (e a escola é a preparação para a disciplina do trabalho, já agora)
Uma
breve nota acerca do terceiro ponto: o efeito disciplinador e
socializante do trabalho. Tem mesmo de ser uma nota breve, pois é
evidente que a incapacidade para compreender certas coisas
elementares da
vida exigiria um curso de vários meses ou anos, não bastando um
simples artigo.
É claro que o
trabalho é uma disciplina e é socializante!, ora
bolas para a grande descoberta!
Não é isso que ponho em causa. O
trabalho, numa sociedade capitalista, é como o ar que respiramos –
está em toda a parte, mesmo quando fazemos separação de lixo em
casa; e quando não há trabalho, as pessoas sufocam. O
que eu ponho em causa é a própria
sociedade para
a qual me querem socializar!
O que Mário Branco me pede é
que eu, a fim de me integrar plenamente na sociedade, a fim de fazer
ombro com ombro com os outros trabalhadores e
marcharmos todos juntos em direcção ao pôr do sol, como os
cowboys, me sujeite a
regras rituais que eu quero destruir, sendo que quero destruí-las
não virtualmente nas páginas virtuais de um blog, não na
virtualidade da teoria livresca, não no sonho esperançoso numa
suposta geração futura, mas agora, já, através de cada uma das
pequenas acções que me forem possíveis.
Eu não quero ser praxado, eu
sou contra as praxes! Não
sei se isto é compreensível para os Mário Branco deste mundo, mas
vamos tentar espevitar a visão das coisas recorrendo a um contexto
ligeiramente diferente – isto é,
saindo da floresta em que nos encontramos embrenhados.
Em Israel,
conforme atestam numerosos testemunhos, só existe uma forma eficaz
de socialização: cumprir o serviço militar. Quem não cumpre o
serviço militar (pode fazê-lo, a muito custo, com muito sofrimento
e com alguma perda
de cidadania) torna-se um pária, à semelhança dos nossos
vagabundos. Terá a maior dificuldade em constituir família, em
encontrar trabalho. Os contactos e amizades necessários ao
desenvolvimento da vida adulta plena (plena,
entenda-se, segundo
o modelo
dominante) são todos feitos
no final da adolescência, em
ambiente de caserna, a dar tiros nos putos que se aproximam do muro
de Israel, a dar pontapés nos velhos que passam na rua como motivo
de diversão, e outras coisas que tais. Passada esta prova ritual, o
cidadão atingiu os dois objectivos pretendidos: 1) assimilou até
ao tutano uma certa maneira
de pensar, estar e relacionar-se em sociedade; 2) está pronto a ser
integrado na sociedade civil
e tornar-se uma pessoa
«responsável».
Dirão:
o que se passa em Israel é horrível, não pode ser comparado com o
que se passa na nossa sociedade. É verdade que duas culturas não
podem nem devem jamais ser comparadas, mas o meu exemplo não tinha
essa intenção; pretendia apenas chamar a atenção para o seguinte:
do ponto de vista da maioria dos israelitas, o que lá se passa é
normal; da mesma maneira que, para a maioria das pessoas na nossa
sociedade, o que cá se passa é normal. Não é preciso tirar um
curso de antropologia, outro de sociologia e mais outro de história
para perceber que, dentro de cada sociedade ou cultura, o
que lá se passa é normal
(e já agora também um curso de estatística e
outro de filosofia,
para perceber o que é uma norma).
O que não é normal, precisamente, é pôr-se em causa o que lá se
passa. E quando isto acontece, quando se põe em causa a normalidade
duma sociedade, é quando os cães começam a ser atiçados, as
campanhas mediáticas a bombardear
massivamente a
opinião pública, os artigos académicos a ser encomendados às
dúzias, etc.
Ainda agora o debate vai no adro
Nesta coisa da
polémica sobre o direito ao trabalho, terreiro onde aliás se
encontram pessoas pelas quais tenho a maior estima e consideração,
desculpem que lhes diga, mas o debate encontra-se ainda a um nível
miseravelmente básico, entravado por preconceitos onde se tropeça a
todo o instante, com grande produção de nódoas negras e luxações.
Há que trabalhar muito mais, de preferência no recato da casa, da
biblioteca e das tertúlias, para chegar a alguma coisa parecida com
uma conclusão apresentável em público e
que não seja uma lastimável versão revista e embelezada do velho
capitalismo. Nestas
condições, querer correr a
apresentar conclusões e grandes directivas para a populaça sobre a questão do trabalho é o
mesmo que ter uma pulsão para fazer figura de tolo.
Custa-me imenso
que pessoas por quem tenho tão elevada consideração se metam
irreflectidamente a dizer coisas tão horripilantes a propósito do
trabalho na sociedade contemporânea.
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