Maravilhosa associação, bolas para a associação
O cérebro humano nasce com uma espécie de
hardware de
origem que dá pelo nome de
associação. Esta
capacidade
de estabelecer associações
entre diferentes objectos é
emulada
em certas
linguagem de programação (por exemplo em Smalltalk) por uma função
que dá precisamente pelo nome de «association»
e que é representada da seguinte forma: chave → valor.
Ou seja, a uma determinada chave/apontador corresponde um outro
objecto.
Estas associações, por sua vez, agrupam-se em grandes conjuntos
para formar aquilo que se chama,
na linguagem de
Smalltalk – tal como na
linguagem corrente – , um
dicionário.
É claro que o
cérebro humano funciona de modo muito mais sofisticado que o
Smalltalk, mas o princípio
fundamental é
o mesmo: o
estabelecimento de
ligações permanentes entre
objectos (ou representações desses objectos), criando entre eles
canais que permitem encontrar
um por intermédio
do outro e enviar mensagens de um para outro.
Esta
habilidade basilar
permite fazer maravilhas,
a começar pela fala, que
estabelece
uma ligação permanente entre um som
e um objecto.
À
partida não tem de haver nenhuma relação –
lógica ou outra – entre os
objectos duma associação;
é o nosso cérebro que a estabelece casualmente,
e se necessário contra toda a lógica. Na
verdade, para que haja uma associação verdadeira é necessário que
ambos os objectos sejam distintos e autónomos.
Aqui deparamo-nos
com o primeiro perigo, ligeiramente
demencial: começarmos a
confundir a chave com o objecto que lhe
está associado. É assim que
certas pessoas (seja por ignorância, seja por um mau funcionamento
qualquer do seu hardware)
rompem a autonomia que deve
existir entre a palavra e o objecto que ela designa,
começando
a baralhar e intermutar as
respectivas propriedades dos
objectos, numa reacção de
associações em cadeia –
o verde adquire o valor da esperança, o Emanuel adquire qualquer
coisa de divino, Vénus adquire mamilos e, sabe-se lá porquê,
talvez por simples associação sonora, a vizinha Vanessa torna-se
desejável e boa como o milho.
Em boa verdade, a
associação não é uma habilidade exclusivamente humana; muitos
outros animais possuem a mesma capacidade – para saber quais, basta
investigar quais são capazes de responder pelo nome. De facto, a
capacidade de associação só deixa
de constituir uma função básica de
sobrevivência e
começa a adquirir
características superiores
quando vem num
pacote que inclui a
capacidade de auto-reflexão. Esta
capacidade permite-nos
produzir associações
em círculo fechado, isto é, associações
cuja chave remete
para nós mesmos.
Curiosamente, a auto-reflexão é também
um dos conceitos centrais
da linguagem de programação Smalltalk, na
qual a noção de
«self» é essencial. A
capacidade de auto-reflexão permite a um objecto (é
assim que se chamam as coisas em Smalltalk) enviar
mensagens a si próprio;
permite que o objecto se
interrogue
a si próprio; permite que
ele conheça a sua origem, a sua classe, as suas próprias variáveis
e a forma como responde às mensagens enviadas
por outros objectos.
No caso
particular do ser humano, a capacidade de associação é tão
potente, tão omnipresente
e permanente, que nem damos conta da sua presença. É
como o ar que respiramos. É,
por assim dizer, excessiva, pois
se por um lado permite
a construção de coisas maravilhosas como a fala e a ciência, por
outro lado torna-se potencialmente
nociva.
Se, da primeira
que comi farelo de amêndoa torrada, eu tinha aftas na boca, é bem
provável que nunca mais na vida me livre da associação
entre as amêndoas e o
suplício de
arestas
cortantes a rasparem nas
aftas. Esta relação
automática
amêndoas → suplício pode
constituir um
elo duro
de quebrar,
pois o processo associativo tem
uma força
tremenda. Mas há mais: tudo o que nesse mesmo instante entrar
pelos sentidos dentro ficará potencialmente ligado à mesma
associação, fará parte do
mesmo «dicionário» (v.
António Damásio). Assim, se
no mesmo instante da prova das amêndoas aconteceu eu travar
conhecimento com uma
pessoa, é possível
que de futuro eu sinta
um vago mal-estar (inexplicável e sem razão aparente) sempre que
essa pessoa me apareça à frente. Da
mesma forma, faz sentido que um certo antepassado nosso tenha
associado imediatamente o fogo à transformação da água em vapor,
ao observar o fenómeno em
acção. Mas essa poderosa
capacidade de associação dá-se de forma espontânea, sem
ponderação, e portanto é igualmente natural que ele, ao
matar um cordeiro no
mesmo dia
em que um ente querido deu mostras de conseguir curar uma gripe e
vencer a morte, crie
um misterioso elo entre a morte do cordeiro e o renascimento humano –
e assim começa a criar-se um novo dicionário de associações na
cabeça do nosso antepassado.
Maravilhosa causalidade, bolas para a causalidade
Muitas
funções mentais são
úteis mas não fazem parte do nosso hardware
– são
programadas culturalmente.
É o caso da relação de causa e efeito. O
conceito de causalidade é
uma derivação sofisticada, mas artificial (cultural),
das relações associativas. O
que sobretudo distingue a relação de causalidade das relações
associativas normais é a
construção de uma hierarquia nessas
relações. A
relação de causalidade
constrói não um dicionário
na sua forma mais simples e
natural (com todas as
associações em pé de igualdade),
mas sim um dicionário estruturado hierarquicamente
– as relações deixam de
ser mútuas, passam a constituir vectores, a ter um
sentido, a organizar-se segundo
escalas de dominância, precedência e valor. Graças
à noção de causalidade, o
valor torna-se parte integrante da lógica e situa-se na origem
etimológica da noção de
verdade.
Como todas as
coisas hierarquizadas, a causalidade constitui um perigo potencial.
Não se pode negar a sua utilidade (na
invenção da ciência, por exemplo),
mas é preciso reservar-lhe
uma cautela constante – eu diria que idealmente devemos dedicar-lhe
uma cautela obsessiva. Tanto mais que o pensamento ocidental, ao
longo dos séculos, transformou a causalidade num império do
pensamento. Este império não tem apenas um sentido metafórico –
ele exerce-se por força de determinados mecanismos ideológicos e
sociais muito poderosos;
suficientemente poderosos para colocarem à margem da sociedade todos
aqueles que recusem fazer a vénia ao imperador.
O império da
causalidade, como todos os impérios, exerce um poder repressivo
contra
todos aqueles que pretendam
permanecer independentes –
caso das
noções de concomitância e correlação. No
caso dos fenómenos mais
simples, as ciências exactas
lá conseguem,
melhor ou pior,
ir combatendo os abusos
de
causalidade. Mas quando o número de factores em jogo se torna
virtualmente incomensurável
– como acontece no caso das ciências humanas e da teoria política
–, a coisa descamba. Estamos aqui a falar de volumes de informação
tão avultados, que nenhum computador poderia armazenar e processar.
Nenhum computador, entenda-se, daqueles que nos habituámos a usar,
porque um computador quântico poderia perfeitamente dar conta do
recado. O nosso cérebro, creio eu, também
pode dar conta do recado, só
que... entra aqui em jogo uma outra lei – uma lei de sobrevivência
chamada preguiça, ou lei do menor esforço, que nos impede de nos
exaurirmos a nós próprios por força do voluntarismo, que
também é uma tendência natural em muitas pessoas, senão
todas. De modo que, se o
truque da causalidade nos permitir
atalhar caminho, resolver os milhões
de termos da equação social
e política reduzindo-a a
duas ou três relações de causalidade e ir para casa descansados
ler um livro e fumar um cigarro, não hesitamos – pomos de parte o
estudo trabalhoso de milhões
de relações mútuas, concomitantes e correlativas, e optamos pela
solução mais fácil: a causalidade unívoca. Não
espanta, por isso, que as pessoas mais voluntariosas sejam
frequentemente as primeiras vítimas do vício de encontrar
causalidades em toda a parte.
Infelizmente, a
questão social e política é
uma daquelas
em que não funciona a regra do
«quanto
mais simples, melhor».
Se funcionasse, já tínhamos dado por isso...
A causalidade
simples, unívoca e obsessiva tornou-se um produto de consumo
corrente em elevada escala. Tens dores no polegar esquerdo? – estás
mal do fígado. Estás mal do fígado? – toma chá de alcachofra.
Não importa que a receita
funcione ou não – o prazer fetichista do uso
da causalidade é mais
forte que toda a prova
material a favor ou contra a receita. O
mundo torna-se uma coisa simples. E é como coisa simples, com
mezinhas de alcachofra, que muitos militantes (de ambos os lados das
barricadas) pretendem endireitá-lo. Mais valia endireitá-lo com uma
receita também ela muito simples e de efeito garantido: viagra. Ao
menos tirava-se daí mais prazer e menos neuroses maníaco-obsessivas.
Os direitos não são negociáveis
Já que falámos
em endireitar, aproveito e abro
aqui um intervalo para recordar algo que anda muito esquecido de
certas hostes: os direitos não são negociáveis. Ou são inteiros,
ou não são. E o mesmo se pode dizer dos princípios.
Não podemos
dizer que a identidade individual (de carácter, de vocação,
sexual, etc.) é um direito universal e depois ir
negociar que, de momento, ela
apenas seja aplicável aos heterossexuais.
Ou que as mulheres não podem
ser agredidas mas, vamos lá,
até duas
chapadas por ano é
aceitável. Ou que 1+1=2 mas,
vamos lá, em caso de extrema
necessidade poderão ser 3.
Sucede que
a história de uma grande parte do
sindicalismo, apesar das vitórias pontuais alcançadas, tem sido nos
últimos 40 anos um rol infindável de traições, cedências e
renegociação dos princípios e dos direitos. Enquanto foi havendo
dinheiro para comer, a coisa passou despercebida. Mas agora que elas
doem mais, está a acontecer que as pessoas tomam consciência desse
rol de traições. E aí, ai de nós, cria-se uma inelutável
associação entre traição e sindicatos. Trocando
por miúdos: muitas
direcções sindicais
promoveram o ódio contra os sindicatos.
Isto é terrível,
porque os sindicatos em si mesmos fazem parte do
direito universal de associação e organização, direito esse que
não deveria ser revisto nem negociado nem
posto em causa. Se
muitas direcções sindicais se tornaram fautoras de uma associação
de ideias poderosa, que
envolve traição e descaminho dos interesses dos trabalhadores, é
de recear que, não tarda
nada, a extrema direita aproveite
para transformar essa
associação em relação de
causalidade (de todas as desgraças que nos acontecem). E nessa
altura a quem devemos pedir contas?
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