03/01/14

Bolas para a causalidade

Maravilhosa associação, bolas para a associação

O cérebro humano nasce com uma espécie de hardware de origem que dá pelo nome de associação. Esta capacidade de estabelecer associações entre diferentes objectos é emulada em certas linguagem de programação (por exemplo em Smalltalk) por uma função que dá precisamente pelo nome de «association» e que é representada da seguinte forma: chave → valor. Ou seja, a uma determinada chave/apontador corresponde um outro objecto. Estas associações, por sua vez, agrupam-se em grandes conjuntos para formar aquilo que se chama, na linguagem de Smalltalk – tal como na linguagem corrente – , um dicionário.

É claro que o cérebro humano funciona de modo muito mais sofisticado que o Smalltalk, mas o princípio fundamental é o mesmo: o estabelecimento de ligações permanentes entre objectos (ou representações desses objectos), criando entre eles canais que permitem encontrar um por intermédio do outro e enviar mensagens de um para outro. Esta habilidade basilar permite fazer maravilhas, a começar pela fala, que estabelece uma ligação permanente entre um som e um objecto. 
 
À partida não tem de haver nenhuma relação – lógica ou outra – entre os objectos duma associação; é o nosso cérebro que a estabelece casualmente, e se necessário contra toda a lógica. Na verdade, para que haja uma associação verdadeira é necessário que ambos os objectos sejam distintos e autónomos.

Aqui deparamo-nos com o primeiro perigo, ligeiramente demencial: começarmos a confundir a chave com o objecto que lhe está associado. É assim que certas pessoas (seja por ignorância, seja por um mau funcionamento qualquer do seu hardware) rompem a autonomia que deve existir entre a palavra e o objecto que ela designa, começando a baralhar e intermutar as respectivas propriedades dos objectos, numa reacção de associações em cadeia – o verde adquire o valor da esperança, o Emanuel adquire qualquer coisa de divino, Vénus adquire mamilos e, sabe-se lá porquê, talvez por simples associação sonora, a vizinha Vanessa torna-se desejável e boa como o milho.


Em boa verdade, a associação não é uma habilidade exclusivamente humana; muitos outros animais possuem a mesma capacidade – para saber quais, basta investigar quais são capazes de responder pelo nome. De facto, a capacidade de associação só deixa de constituir uma função básica de sobrevivência e começa a adquirir características superiores quando vem num pacote que inclui a capacidade de auto-reflexão. Esta capacidade permite-nos produzir associações em círculo fechado, isto é, associações cuja chave remete para nós mesmos. Curiosamente, a auto-reflexão é também um dos conceitos centrais da linguagem de programação Smalltalk, na qual a noção de «self» é essencial. A capacidade de auto-reflexão permite a um objecto (é assim que se chamam as coisas em Smalltalk) enviar mensagens a si próprio; permite que o objecto se interrogue a si próprio; permite que ele conheça a sua origem, a sua classe, as suas próprias variáveis e a forma como responde às mensagens enviadas por outros objectos.

No caso particular do ser humano, a capacidade de associação é tão potente, tão omnipresente e permanente, que nem damos conta da sua presença. É como o ar que respiramos. É, por assim dizer, excessiva, pois se por um lado permite a construção de coisas maravilhosas como a fala e a ciência, por outro lado torna-se potencialmente nociva.

Se, da primeira que comi farelo de amêndoa torrada, eu tinha aftas na boca, é bem provável que nunca mais na vida me livre da associação entre as amêndoas e o suplício de arestas cortantes a rasparem nas aftas. Esta relação automática amêndoas → suplício pode constituir um elo duro de quebrar, pois o processo associativo tem uma força tremenda. Mas há mais: tudo o que nesse mesmo instante entrar pelos sentidos dentro ficará potencialmente ligado à mesma associação, fará parte do mesmo «dicionário» (v. António Damásio). Assim, se no mesmo instante da prova das amêndoas aconteceu eu travar conhecimento com uma pessoa, é possível que de futuro eu sinta um vago mal-estar (inexplicável e sem razão aparente) sempre que essa pessoa me apareça à frente. Da mesma forma, faz sentido que um certo antepassado nosso tenha associado imediatamente o fogo à transformação da água em vapor, ao observar o fenómeno em acção. Mas essa poderosa capacidade de associação dá-se de forma espontânea, sem ponderação, e portanto é igualmente natural que ele, ao matar um cordeiro no mesmo dia em que um ente querido deu mostras de conseguir curar uma gripe e vencer a morte, crie um misterioso elo entre a morte do cordeiro e o renascimento humano – e assim começa a criar-se um novo dicionário de associações na cabeça do nosso antepassado.


Maravilhosa causalidade, bolas para a causalidade

Muitas funções mentais são úteis mas não fazem parte do nosso hardware são programadas culturalmente. É o caso da relação de causa e efeito. O conceito de causalidade é uma derivação sofisticada, mas artificial (cultural), das relações associativas. O que sobretudo distingue a relação de causalidade das relações associativas normais é a construção de uma hierarquia nessas relações. A relação de causalidade constrói não um dicionário na sua forma mais simples e natural (com todas as associações em pé de igualdade), mas sim um dicionário estruturado hierarquicamente – as relações deixam de ser mútuas, passam a constituir vectores, a ter um sentido, a organizar-se segundo escalas de dominância, precedência e valor. Graças à noção de causalidade, o valor torna-se parte integrante da lógica e situa-se na origem etimológica da noção de verdade.

Como todas as coisas hierarquizadas, a causalidade constitui um perigo potencial. Não se pode negar a sua utilidade (na invenção da ciência, por exemplo), mas é preciso reservar-lhe uma cautela constante – eu diria que idealmente devemos dedicar-lhe uma cautela obsessiva. Tanto mais que o pensamento ocidental, ao longo dos séculos, transformou a causalidade num império do pensamento. Este império não tem apenas um sentido metafórico – ele exerce-se por força de determinados mecanismos ideológicos e sociais muito poderosos; suficientemente poderosos para colocarem à margem da sociedade todos aqueles que recusem fazer a vénia ao imperador.

O império da causalidade, como todos os impérios, exerce um poder repressivo contra todos aqueles que pretendam permanecer independentes – caso das noções de concomitância e correlação. No caso dos fenómenos mais simples, as ciências exactas lá conseguem, melhor ou pior, ir combatendo os abusos de causalidade. Mas quando o número de factores em jogo se torna virtualmente incomensurável – como acontece no caso das ciências humanas e da teoria política –, a coisa descamba. Estamos aqui a falar de volumes de informação tão avultados, que nenhum computador poderia armazenar e processar. Nenhum computador, entenda-se, daqueles que nos habituámos a usar, porque um computador quântico poderia perfeitamente dar conta do recado. O nosso cérebro, creio eu, também pode dar conta do recado, só que... entra aqui em jogo uma outra lei – uma lei de sobrevivência chamada preguiça, ou lei do menor esforço, que nos impede de nos exaurirmos a nós próprios por força do voluntarismo, que também é uma tendência natural em muitas pessoas, senão todas. De modo que, se o truque da causalidade nos permitir atalhar caminho, resolver os milhões de termos da equação social e política reduzindo-a a duas ou três relações de causalidade e ir para casa descansados ler um livro e fumar um cigarro, não hesitamos – pomos de parte o estudo trabalhoso de milhões de relações mútuas, concomitantes e correlativas, e optamos pela solução mais fácil: a causalidade unívoca. Não espanta, por isso, que as pessoas mais voluntariosas sejam frequentemente as primeiras vítimas do vício de encontrar causalidades em toda a parte.

Infelizmente, a questão social e política é uma daquelas em que não funciona a regra do «quanto mais simples, melhor». Se funcionasse, já tínhamos dado por isso...

A causalidade simples, unívoca e obsessiva tornou-se um produto de consumo corrente em elevada escala. Tens dores no polegar esquerdo? – estás mal do fígado. Estás mal do fígado? – toma chá de alcachofra. Não importa que a receita funcione ou não – o prazer fetichista do uso da causalidade é mais forte que toda a prova material a favor ou contra a receita. O mundo torna-se uma coisa simples. E é como coisa simples, com mezinhas de alcachofra, que muitos militantes (de ambos os lados das barricadas) pretendem endireitá-lo. Mais valia endireitá-lo com uma receita também ela muito simples e de efeito garantido: viagra. Ao menos tirava-se daí mais prazer e menos neuroses maníaco-obsessivas.


Os direitos não são negociáveis

Já que falámos em endireitar, aproveito e abro aqui um intervalo para recordar algo que anda muito esquecido de certas hostes: os direitos não são negociáveis. Ou são inteiros, ou não são. E o mesmo se pode dizer dos princípios.

Não podemos dizer que a identidade individual (de carácter, de vocação, sexual, etc.) é um direito universal e depois ir negociar que, de momento, ela apenas seja aplicável aos heterossexuais. Ou que as mulheres não podem ser agredidas mas, vamos lá, até duas chapadas por ano é aceitável. Ou que 1+1=2 mas, vamos lá, em caso de extrema necessidade poderão ser 3.

Sucede que a história de uma grande parte do sindicalismo, apesar das vitórias pontuais alcançadas, tem sido nos últimos 40 anos um rol infindável de traições, cedências e renegociação dos princípios e dos direitos. Enquanto foi havendo dinheiro para comer, a coisa passou despercebida. Mas agora que elas doem mais, está a acontecer que as pessoas tomam consciência desse rol de traições. E aí, ai de nós, cria-se uma inelutável associação entre traição e sindicatos. Trocando por miúdos: muitas direcções sindicais promoveram o ódio contra os sindicatos.

Isto é terrível, porque os sindicatos em si mesmos fazem parte do direito universal de associação e organização, direito esse que não deveria ser revisto nem negociado nem posto em causa. Se muitas direcções sindicais se tornaram fautoras de uma associação de ideias poderosa, que envolve traição e descaminho dos interesses dos trabalhadores, é de recear que, não tarda nada, a extrema direita aproveite para transformar essa associação em relação de causalidade (de todas as desgraças que nos acontecem). E nessa altura a quem devemos pedir contas?

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