26/11/13

Habilitações necessárias para ministro

Saindo da toca uns quantos salvadores do país e da democracia, logo se puseram num berreiro contra a falta de democracia, o desconchavo das contas públicas, o aperto que o povo sofre e outras maleitas resultantes da governança. Sendo que por acaso foram eles ou padrinhos, ou mandantes, ou executantes do golpe militar do 25 de Novembro de 1975, que derrotou as experiências de democracia directa e instituiu o Estado de direito e a democracia representada, da qual continuamos a padecer ainda agora - e independentemente de alguns dos seus berros terem razão de ser -, creio que é muito boa ocasião para citar Eça de Queirós. Eu sei que já vamos na milésima citação deste mesmo texto, mas ainda assim não deixa de vir a propósito.

Há muitos anos que a política em Portugal apresenta este singular estado:
Doze ou quinze homens, sempre os mesmos, alternadamente, possuem o poder, perdem o poder, reconquistam o poder, trocam o poder ... O poder não sai duns certos grupos, como uma péla que quatro crianças, aos quatro cantos de uma sala, atiram umas às outras, pelo ar, num rumor de risos.
Quando quatro ou cinco daqueles homens estão no poder, esses homens são, segundo a opinião e os dizeres de todos os outros que lá [não] estão, os corruptos, os esbanjadores da fazenda, a ruína do país.
Os outros, os que não estão no poder, são, segundo a sua própria opinião e os seus jornais, os verdadeiros liberais, os salvadores da causa pública, os amigos do povo, e os interesses do país!
Mas, coisa notável! – os cinco que estão no poder fazem tudo o que podem para continuar a ser os esbanjadores da fazenda e a ruína do país, durante o maior tempo possível! E os que não estão no poder movem-se, conspiram, cansam-se, para deixar de ser o mais depressa que puderem – os verdadeiros liberais, e os interesses do país!

25/11/13

Xenofobia impune na Polícia?

Dada a gravidade criminal e política dos actos praticados por alguns agentes das forças policiais (vulgo «autoridade») e a perspectiva de permanecerem impunes como de costume, aqui reproduzo um artigo publicado pelo Pensador Zarolho:

De tudo aquilo que se viu, disse, escreveu e leu sobre a manifestação das forças de segurança, na passada quinta-feira, em frente à Assembleia da República, há um triste episódio que passou despercebido, talvez por ter sido apenas visto na antena da Sic Notícias, num directo do Jornal das 9.

Após os manifestantes terem subido, de forma ordeira e pacífica, as escadarias da Assembleia da República, surge nos ecrãs um manifestante que começa por insultar todos os seus colegas de profissão que, por convicção, por falta dela, ou por qualquer outro motivo, não puderam, ou não quiseram, estar presentes naquele protesto, vociferando que "os cobardes ficaram em casa".

Como se isto já não fosse suficientemente grave, o mesmo manifestante decide apontar baterias a um alvo que nada tem que ver com os motivos que o levaram ali e começa a berrar "porcos pretos prá África!", como podem confirmar no vídeo abaixo.

23/11/13

Os pauliteiros e o beco

 
 
Há uma parte importante da história verdadeira, não mitificada, do PREC que está por fazer. Verdade seja dita, há imensas partes. Mas esta que aqui quero recordar considero-a particularmente importante, pois é uma das principais fontes de fragilização de todo o processo revolucionário em curso (PREC) durante 1974-1975, senão a de maior caudal. Refiro-me à enxurrada de candidatos a militantes que assaltou os partidos logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. Por essa época os militantes e quadros partidários formados durante a resistência à ditadura totalizavam uma ninharia de gente, face à efervescência popular e ao número de frentes de luta, que aumentava todos os dias a olhos vistos. Perante a sua própria falta de recursos humanos, os partidos cederam à gula e puseram-se a distribuir cartões a torto e a direito – um recorde que só viria a ser vencido anos mais tarde, com a distribuição indiscriminada de cartões de crédito bancário.
 
Disse partidos, em geral e abstracto; mas de facto interessa-me sobretudo falar dos partidos de esquerda, pois apenas destes tenho algum conhecimento directo. A enxurrada de candidatos a militantes engordou uma parte dos partidos (os «grandes») – estou a lembrar-me, por exemplo, da UDP e do PCP. Os outros, aqueles que por cautela ou desconfiança apenas abriram uma nesga da porta, e ainda assim sempre perguntando pelo santo e senha, mantiveram uma dimensão diminuta. Isso lhes valeu, durante as 4 décadas seguintes, serem gozados e amesquinhados pelos «grandes». Ser pequeno tornou-se um anátema. 

21/11/13

Representações opusdeificadas da ideia de sexualidade

Passou uma semana de tiradas de bloguistas, articulistas e comentadores de esquerda sobre a sexualidade e a indústria do machismo, como se pode ver aqui (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9) (obrigado pela listagem, Renato). Há muito alguns destes autores deveriam ter feito um pacto de silêncio sobre dois (pelo menos) territórios: a arte e a sexualidade. Poupar-se-iam assim a figuras tristes. Poupar-me-iam a mim ao pesadelo de os imaginar um dia com alguma espécie de poderes sobre o território artístico, moral e comportamental das nossas vidas. 

Sobre a ausência de pensamento em matéria de artes, já disse, numa série de 7 artigos. Sobre a presente questão da sexualidade e da exposição do corpo, a resposta é mais difícil. É difícil, em primeiro lugar, porque os textos em questão são na sua generalidade indecifráveis, retorcidos e incoerentes. De que raio estão eles a falar, ao certo? Por fim damo-nos conta de que a dificuldade provém do rebuscado rebuço com que expõem o tema – o rebuço de quem quer falar do assunto, zurzir nos pecadores, mas se vê enredado numa mortalha de vergonha que não permite dizer tudo às claras (creio não estar a fazer nenhum julgamento de intenção).

Na impossibilidade de extrair algum pensamento coerente desses arrazoados, escolho umas quantas citações avulsas.

19/11/13

Dicionário do charme político: desenvolvimento


Muitos termos usados pelos políticos profissionais e pelos poderes públicos vencem pelo charme e matam pelas consequências.

Este dicionário do charme político está em vias de construção lenta e por fases.
Verbetes anteriores: economia ;

Desenvolvimento

Etimologia
Temos aqui escondida uma raiz mínima: volver (dar voltas). A partir dela se formaram e evoluíram conceitos tão variados como envelope, evolução, revolta, revolução, envolver, … Esta diversidade de derivados mostra que a evolução histórica e cultural dos conceitos é uma parte fundamental da etimologia. No caso particular do desenvolvimento, temos que partir da ideia de envolver/envelope – dar voltas a uma coisa para a enroupar em algo; comprometer alguém num determinado âmbito de interesses. O moderno conceito de desenvolvimento é indissociável da ideia de continente; dizer que uma corrente de ar se desenvolveu numa gripe contém a ideia de que algo (neste caso um vírus) que estava contido foi libertado do seu invólucro protector, provocando uma cadeia de reacções.


Uso actual
A origem e utilização do conceito político de desenvolvimento tem origem (tanto quanto sei) no discurso de tomada de posse do presidente norte-americano Truman:
«O velho imperialismo – a exploração para enriquecimento estrangeiro – não faz parte dos nossos planos. Concebemos um programa de desenvolvimento baseado nos conceitos de justiça e fair-dealing democrático. Todos os países, incluindo o nosso, teriam muito a ganhar com um programa construtivo para melhorar a utilização dos recursos humanos e naturais» [Harry S. Truman, 20-01-1949] *

Dicionário do charme político: economia

Muitos termos usados pelos políticos profissionais e pelos poderes públicos vencem pelo charme e matam pelas consequências.
Este é um dicionário do charme político, em vias de construção lenta e por fases.


Economia


Etimologia
Os gregos chamavam «oikos» à casa, incluindo todo o seu conteúdo e administração; chamavam ao administrador desse conjunto de coisas «nemó». Formou-se assim a palavra «okomos», que designa a administração da casa. A palavra «nomos» designava o acto de contar, ou atribuir, ou distribuir. O sufixo «-ia» indica a qualidade duma coisa. Portanto «economia» designa originalmente as funções de contabilidade e gestão da casa, e circunscreve um âmbito pessoal e patrimonial. Como todas as raízes, esta contém em si a génese da verdade das coisas designadas. A raiz permanece; sem ela a palavra não poderia sobreviver. Mas no decorrer do tempo, das culturas e da História o termo foi desabrochando em novos sentidos. Em 1615, em pleno absolutismo monárquico, Antonio de Montcheretien propôs que, sendo o conceito de economia aplicável à administração do Estado (a casa real), deveria introduzir-se a ideia de «economia política». Mais tarde William Petty publica a Aritmética Política; e por fim Adam Smith publica em 1776 A Riqueza das Nações, trazendo definitivamente o conceito para o âmbito da coisa pública; não por acaso, a Inglaterra adiantava-se então na senda industrial e capitalista. O nome de relevo que geralmente é indicado a seguir é o de Alfred Marshall, que em 1890 publica os Princípios de Economia. O nome que geralmente fica ocultado é o de Karl Marx, que dedica uma vida inteira a reconduzir o estudo da economia à categoria de ciência e por volta de 1867 publica o Livro I de O Capital. Marx torna clara a associação dos modelos económicos e de produção (ou mais exactamente os modelos de apropriação e gestão dos meios de produção) aos factores determinantes (de base) que estruturam uma sociedade de alto a baixo. De facto, no que respeita ao presente artigo, a primeira coisa a assinalarmos na versão moderna da expressão «economia» é a sua adequação à fase actual do modo de produção capitalista.

14/11/13

Proponho uma revisão da estátua da república, tomando como modelo mariano a Brigitte Bardot


Cada vez mais ouço, ao passar por esquinas e portais, senhores de pasta e gravata enfiada em casacos de azul-escuro e de mau corte dizerem que «é preciso esquecer a Constituição». Referem-se, julgo eu, à suspensão de normas fundamentais em benefício de determinadas práticas favorecedoras de determinados interesses económicos (senão, porquê a pasta, o azul e o mau corte?).

Estas conversas mantidas à esquina do tempo, que imagino seja o da espera pelo boss ou pelo motorista, são em tudo semelhantes às dos bêbados que, em estado já neuronicamente diminuto, nas tascas dão lições técnicas ao treinador do seu clube de futebol favorito, não fazendo a mais pequena ideia do que estão a falar. Ficamos assim a saber que há muito não se ensina na escola uma coisa básica: o que é uma constituição e para que serve.

02/11/13

Nunca mais começa a guerra civil?

A quantidade de meios de produção, obras de arte, monumentos, hospitais, escolas e habitações destruídos pelas duas guerras mundiais – para não falar já no essencial, que são as vidas humanas perdidas – foi avassaladora. As imagens dessas perdas são de tal forma fortes, que ao olharmos para elas o coração nos dá um solavanco na caixa do peito. A destruição foi efectuada através de bombardeamentos e outros meios de destruição maciça; deixou para trás cidades inteiras arrasadas. Como é sabido, quando a taxa de lucro do capital cai drasticamente, a guerra é o seu remédio santo – depois das duas grandes guerras a «economia» (leia-se o lucro privado) entrou em espectacular recuperação. 


Mas os tempos mudam, e de que maneira! Para entendermos o que se passa hoje, teremos de analisar os acontecimentos à luz das profundas transformações operadas nos recursos e nos métodos de guerra nas últimas décadas.