09/08/13

Que não se repita este amargo de boca

Estou aborrecido comigo mesmo – com a atitude que eu próprio apliquei ao dia do meu próprio aniversário,  passando por ele como cão por vinha vindimada.

Nesta atitude parda, indiferente, aversa a um momento de excitação aparentemente pueril, há qualquer coisa que roça as atitudes fascistas.
As falanges das camisas castanhas pardas, dos sentimentos pardos, das políticas pardas, essas mesmas a quem exalta apenas o culto da pátria e o da guerra, estiveram fantasmaticamente presentes nesse aniversário que transformei num dia como os outros, mais carregado de afazeres costumeiros. Quem diz culto da guerra diz culto da morte; da destruição de toda a riqueza produzida pelo génio e pelo labor; da morte de tudo quanto de bom e agradável foi produzido e acumulado. Quem diz culto da pátria diz obediência cega ao «dever», à teta benevolente e abstracta donde se alimenta o poder insuportável e desumano; às obrigações sem celebração da vida; ao culto sem objecto definido; à pardacenta exaltação fictiva.

É uma triste verdade: venho notando à minha volta o alastramento desta atitude de desprezo (melhor dito: indiferença ou mesmo ignorância) pelo dia de aniversário. E muitas vezes mesmo noto que a recente moda de celebrar o renascimento por mais um ano em restaurantes incaracterísticos, impessoais, num ambiente onde às tantas pode o aniversariante cair na berma do passeio em coma alcoólico sem que os convivas disso dêem conta, continuando alegremente a noitada, advém precisamente do adormecimento comatoso do ritual. Acontece muito isto, em todas as áreas da sociedade – com o correr dos tempos mantém-se o ritual, mas já esvaziado de sentido, e isso mesmo o transforma formalmente noutro algo.

Não consigo deixar de associar esse alastramento comatoso do ritual ao cinzentismo pardo, à negação do erotismo, à negação do esforço (de imaginação, estético) de apresentação perante o outro (para gáudio dos olhos desse outro). Não consigo deixar de o fazer porque definitivamente as pessoas que vejo indiferentes ao ritual aniversariante são as mesmas que se recusam usar uma camisa berrantemente alegre, um figurino de cortar a respiração, uns sapatos que nos fazem demorar os olhos na configuração daqueles pés, ou daquelas pernas. São os fascistas da mente, os carrascos da imaginação (ainda que muitas vezes se julguem progressistas e revolucionários); são os exterminadores da celebração das relações eternas e sempre renovadas, apenas possíveis no exercício exaustivo duma imaginação intimamente provocatória, isto é, do erotismo.

O que é a celebração do aniversário, afinal? É a celebração da vida, de mais um ano de vida. É a celebração do belo filho que tivemos, dos bons amigos que acumulámos, do belo companheiro que conquistámos. É a celebração da vitória da vida sobre a morte. Talvez esta vitória não pareça hoje grande feito, por efeito dos avanços da ciência médica e da segurança social, que estendeu a todos o privilégio que era de apenas alguns.

Em tempos idos, passar um recém-nascido dos 12 meses de idade era um feito a celebrar – a mortalidade neonatal e infantil ascendia às centenas por milhar. Passar o cabo dos 30, isso então era uma lança em África. O que começava por ser um exército de 12 irmãos acabava muitas vezes por ser um humilde quarteto, ou menos, antes do primogénito somar 20 anos. Por isso mesmo não seria difícil entender o sentido da celebração rejubilante de mais um ano vencido.

Esse dobrar de sucessivos cabos das tormentas da vida e das acumuladas vitórias sobre a morte é agora facilitado pelo gigantesco progresso técnico e científico da medicina, e da sociedade também. Por isso mesmo: mais um motivo para celebrar – não só o formidável feito pessoal de ter vivido mais um ano, mas também o sucesso formidável do esforço colectivo.

Foi hábito ritual meu, ainda há pouco tempo, transformar cada aniversário numa festa cheia de prazeres, surpresas e encenações agradáveis, oferecidas a quem vivendo mais próximo de mim me dava prazer que ainda comigo vivesse e comigo vencesse a morte.

Do erro cometido este ano não creio que possa perdoar-me. Que não se repita.

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