30/08/13

O perigo umarino deve ser espezinhado aos pés e deitado aos cães

[Actualização em 6/09/2013: Uma parte deste artigo baseou-se na apreciação de um acontecimento que eu apenas conhecia por interposto testemunho. Foi um erro, evidentemente, como veio a provar-se quando vi o vídeo da intervenção em questão, onde uma militante feminista fala sobre a questão do assédio e a situação da mulher. Por desconhecer o sentido de algumas palavras em português (creio eu) e por infelicidade de linguagem (creio eu outra vez) inerente ao risco da improvisação em público, a apresentação contém deslizes que não deixo de apontar, por roçarem atitudes extremas de normatividade e criminalização de comportamentos que me levam, por exemplo, a não querer viver no Irão. Mas de uma maneira geral defende uma tese geral obviamente correcta: o direito das mulheres a usufruírem o espaço público sem se sentirem ameaçadas e não deixarem passar em claro os abusos e violências de que são vítimas. Perante isto, o meu artigo talvez pudesse ser reformulado ou substituído. Como sou contra a manipulação da história, mantenho o registo de um artigo que já foi publicado.]











Uma proposta facilmente descambável em atitudes fascistóides foi de alguma forma apadrinhada pela UMAR: a equiparação do piropo e do olhar a assédio e portanto a atitude criminosa nos termos da lei.

Quero tirar aqui o chapéu a um artigo que coloca a questão nos devidos termos, intitulado «Os Nomes das Coisas», e que começa com a seguinte frase: «De que falamos quando dizemos piropo?»

Sobre a iniciativa da UMAR já correm rios de tinta na Internet; pouco ou nada resta acrescentar; mas gostaria de discorrer duma forma não linear, noutras dimensões, a propósito do assunto:


  1. Na minha família era proibido dizer qualquer coisa que se parecesse com um palavrão, incluindo o calão nas suas versões mais suaves e socialmente aceitáveis. A minha mãe, muito excepcionalmente – quando fazia um lenho no dedo, quando se queimava num tacho, quando dava uma topada com o dedo mindinho do pé numa esquina de porta –, era capaz de dizer baixinho aos seus botões: «chiça, penico, chapéu de côco!». Do meu pai, nem isso ouvi durante quase 50 anos que o conheci em vida.
    Esta proibição na verdade não existia, não era norma imperativa, não se traduzia em castigos, nem sequer em reprimendas. Da única vez que tentei introduzir um linguarejo de carroceiro na conversa do serão, o meu pai limitou-se a perguntar, com toda a calma: «o que é que queres dizer exactamente com isso?». Como tenho inteligência suficiente para perceber o sentido da pergunta, compreendi instantaneamente que há um certo tipo de linguarejar que não visa a comunicação com os outros mas sim a expansão autista de emoções e estados de alma não identificados, que o próprio não compreende nem é capaz de comunicar, limitando-se a exibi-los, um pouco à maneira dos exibicionistas que abrem a gabardina diante das meninas sentadas no banco de jardim.
    O que existia lá em casa não era uma proibição, era uma ética (pessoal, portanto), que cada um seria livre de adoptar ou não, consoante achasse melhor, desde que não ofendesse os demais. Ora a ideia do que é melhor, lá em casa, coincidia consensualmente na capacidade de expressão e comunicação efectiva. Graças àquela frase calma e não acusatória nem moralista do meu pai, sei hoje que perante um discurso horripilante de Passos Coelho é inconsequente eu dizer «foda-se»; é preferível, e até necessário, reflectir pausadamente (antes de abrir a boca) sobre o que posso ou não posso fazer para contrariar a selvajaria do Passos e sobre como devo, em público, contra-argumentar duma forma convincente e mobilizadora.
    Poderão vocês perguntar: mas não é razoável que existam os dois momentos? – o da explosão emocional e o da reflexão? Nada tenho contra as explosões emocionais; acho mesmo que fazem parte da mais elementar higiene mental e pessoal. Mas a minha experiência diz-me que a prática constante do carroceirismo atrofia a inteligência, resulta em danos mentais permanentes.
    Com o correr dos anos, a linguagem de carroceiro tornou-se a linguagem comum em toda a parte – qualquer universitário é hoje em dia um carroceiro (há quem chame a isto «processo de democratização») e uma reunião de estudantes num bar nocturno expressa-se geralmente num vocabulário de cerca de 150 palavras, grande parte das quais pertencentes à categoria do palavrão. Pode perguntar-se com propriedade: mas de que raio estão eles a falar? Isso não se sabe, jamais se saberá, talvez eles próprios não saibam. Compete ao ouvinte, suposto destinatário da suposta comunicação, inventar ou imaginar o que aquela pessoa possa estar a querer dizer, visto que as palavras que usa não designam um conjunto definido e articulado de objectos e sentimentos, a não ser no sentido literal pornográfico.
  2. O meu pai não era dado a grandes confidências. Era reservado, talvez em demasia. Era também de um cavalheirismo imaculado, sempre correcto com todos e todas. Por isso espantou-me um dia, já ele estava velho e fisicamente decrépito por razões de saúde, já não podendo de forma alguma ser considerado uma ameaça física ou sexual fosse para quem fosse, espantou-me descair-se ele com esta confidência:
    «Há uma coisa maravilhosa nisto de chegar à minha idade e a este estado: posso, pela primeira vez na vida, gabar um penteado, umas pernas, um busto, sem que isso seja considerado assédio, nem sequer uma tentativa cortês de sedução. E sabes que mais? As pessoas recebem com evidente prazer os elogios e piropos que lhes lanço. E eu sinto um prazer inefável em exprimir o prazer que me dá olhar e sentir a presença de certas pessoas. Nunca na vida tinha podido gozar este prazer, porque seria mal aceite e portanto me faria sentir mal comigo mesmo. Hoje, felizmente, posso gozá-lo à vontade.»
  3. Há nisto tudo uma visão clara das coisas que resulta igualmente evidente e certeira no referido artigo «Os Nomes das Coisas»: só quem tem o hábito reiterado da linguagem de carroceiro pode ter atingido um estado mental capaz de confundir «piropo» com «assédio».
    É claro que o piropo pode fazer parte de um esquema de assédio – exactamente nos mesmos termos em que uma oferta de emprego pode ser assédio, um flirt pode ser assédio, a gentileza de abrir uma porta para oferecer passagem pode ser parte de um esquema de assédio, etc. Muitas coisas neste mundo podem ser parte de esquemas de assédio e brutalidade; e no entanto essas mesmas coisas podem, inversamente, exprimir uma bondade, um respeito e uma beleza que tornam uma felicidade o facto de existirmos rodeados de outros seres humanos que têm a gentileza de olhar para nós com toda a atenção. É do olhar atento, aliás, que deriva a expressão «ser atencioso».
    Para distinguir esses dois possíveis sentidos opostos da mesma coisa, é claro que é necessário compreender a diferença entre forma e conteúdo. 
    Ora, quem diz conteúdo, no caso vertente, diz intenção.E aqui depara-se-nos um problema bicudo, e que terrível bico este: no meu sistema ético, é-me terminantemente vedado julgar as intenções dos outros (aliás, o julgamento de intenções é uma especialidade fascista bem conhecida) e é-me obrigatório considerar toda a gente inocente, seja em que circunstância for e até prova em contrário. Portanto não posso julgar um olhar, uma leve carícia, um piropo (quando digo piropo não estou a referir-me a frases de uma rudeza ofensiva ou agressiva expressa e evidente, pobre de mim se fosse estúpido ao ponto de confundir as coisas), sem incorrer automaticamente numa atitude potencialmente fascista.
    Os alemães e os americanos, por exemplo, ficam horrorizados quando lhes pomos a mão amigável no ombro (o mais elementar dos gestos de carícia) para perguntarmos: «Então, correu-te bem o dia?, estás feliz?»
    A expressão do afecto e da sexualidade virtual é tabu em certas culturas.
  4. Se tivéssemos a coragem de chamar os bois pelos nomes, o que estaríamos a discutir agora seria uma coisa já descrita há séculos pelo Marquis de Sade: o sadismo; ou, dito de outra maneira, avanços de carácter aparentemente sexual mas cujo verdadeiro fim é o abuso de poder; ou, melhor dito ainda, o fetiche do poder. Certas frases são lançadas por certas bestas a uma mulher que passa, pela simples razão de o agressor saber que tem sobre a sua vítima um poder baseado na força física; se ele suspeitasse a possibilidade de a resposta à sua frase ser um murro e 3 dentes partidos, é evidente que ficaria calado. O chefe de secção que insiste em assediar a empregada com piropos todos os dias, das 9 da manhã às 6 da tarde, usa o fetiche dum poder que ele (e ela) sabe que tem: o poder de contratar ou despedir; pode muito bem acontecer (e acontece) que nem sequer esteja, de facto, interessado num avanço de carácter sexual. [nota: em tudo o que acabo de descrever podem inverter o género masculino e feminino de todas as palavras, que o sentido mantém-se - o fetiche não é propriedade exclusiva nem privilegiada de nenhum género]
    O que está verdadeiramente em causa é o exercício do poder, seja de que forma for, por que meios for, com que intenção for. O que está em causa é um abuso sádico do poder. E todas as feministas dignas desse nome sabem disso há mais de 100 anos. Porque são inteligentes e estudam a realidade social em que vivem.
    Confundir a arte do piropo ou o prazer do olhar ou até a manifestação virtual incontida da pulsão sexual, com sadismo … é um erro frequente resultante da falta de reflexão; é um exercício de ofensivo para a generalidade das mulheres e dos homens. Iniciativas deste tipo são potencialmente um ataque arrasador a alguns dos mais elementares direitos das cartas dos direitos humanos universais, designadamente no que se refere à independência cultural, social e de personalidade. É o prenúncio da necessidade de nos fecharmos todos em casa à chave, para queimarmos às escondidas o álbum de fotografias de infância dos nossos filhos em pelota, para não sermos lançados na fogueira da pedofilia, tal como nos tempos do fascismo nos fechávamos à chave em casa para queimarmos os panfletos de Humberto Delgado, antes que alguém nos denunciasse a troco de uma nota de 20 escudos. Às pessoas que pretendem fazer-me regressar a esses tempos de terror, reservo-me o direito a toda a violência revolucionária que estiver ao meu alcance - sendo-me absolutamente indiferente que sejam filiadas no SIS ou na UMAR.
  5. Durante alguns anos trabalhei num certo tipo de bares, onde se reuniam estudantes e profissionais do teatro e do cinema, das artes e das letras, escritores, pintores, performers, noctívagos sem ocupação, etc. Nunca fiz as contas, mas sem qualquer espécie de dúvida uma valente percentagem desta população era homossexual; e se a esses e essas juntarmos quantos davam para os dois lados, obteríamos, também sem qualquer espécie de dúvida, uma larguíssima maioria qualificada. Na realidade, embora fosse uma irritante moda dessa época a classificação das tendências e opções sexuais (recordemos que estávamos em guerra pelo direito à diferença, a todos os níveis e em todas as áreas), eu diria que a conclusão a tirar daquele ambiente privilegiado era precisamente que a classificação das tendências tinha deixado de ser importante – todos os tipos de atracção, todos os impulsos, todos os delírios e fantasias eram legítimos, ainda que amanhã fossem de sinal contrário aos de hoje. Saber quantas pessoas tinham dormido na mesma cama na noite anterior era coisa pouco digna de nota, porque o sentido tradicional, burguês, de família, de corte, de assédio e de comportamento sexual estavam em vias de extinção naquele ambiente social. [Nota marginal: neste domínio, um dos efeitos marginais do neoliberalismo é um angustiante retorno a um passado anterior a essa época.]
    O facto de eu trabalhar nesses bares levou-me (a propósito de uma linha de coca ou de outra coisa qualquer) a permanecer na casa de banho das mulheres incontáveis vezes e longos minutos. Conheço portanto uma coisa que pouquíssimos homens conhecerão: a forma como muitas mulheres falam dos homens e o tipo de linguagem que usam ao fazê-lo, e o tipo de intenções declaradas - e apenas aí, no WC, declaradas, porque as declarantes estão à vontade, no seu território; a casa de banho das mulheres (assim como a dos homens) é um lugar sagrado, um território livre -, as intenções, dizia eu, declaradas com que adoptam certos comportamentos. Essas, que eu conheci nesses tempos nas casas de banho noctívagas, é evidente que jamais se atreverão a vir falar comigo acerca do pecado de encarar os outros (sejam de que sexo forem, e incluindo cães e cavalos) como «objecto» sexual.
  6. E no entanto, apesar de tudo isto que digo, a questão mantém-se: há momentos e atitudes belas na vida; como há sadismo e fetiche de poder. Há respeito e cumplicidade nos mais perversos jogos de sedução e sexo; como há desrespeito e brutalidade. Há pessoas inteligentes; como há pessoas estúpidas. Há …

    [corrigido em: 31/08/2013; 11/12/2013]

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