10/06/13

Como fazer política


«Ninguém é mais escravo do que aquele que considera ser livre sem o ser» (Goethe).

Saber fazer política apenas é dispensável para quem aceite como projecto de vida a escravidão.

Felizmente fazer política é a coisa mais fácil do mundo. Não carece de cursos de especialização nem de uma vida inteira de estudo e investigação, ao contrário do que acontece com a economia, a física quântica, a criação cinematográfica e muitas outras actividades altamente especializadas. Fazer política é talvez o acto mais simples do mundo para quem viva num ambiente social denso. Diria mesmo que fazer boa política corre o risco de ser mais simples do que fazer bom sexo.


A abordagem do tema aqui escolhida entra pelo lado da lógica. Isto não implica a presunção de que a lógica seja um modo de pensamento superior a qualquer outro (longe de mim tal ideia!), mas apenas que neste caso, e por agora, seria da maior conveniência não misturar abordagens diferentes, para evitarmos erros graves.

O ponto de partida

Qualquer tentativa de solução dos problemas – ou, mais simplesmente, das situações da vida – parte sempre de uma pergunta, mesmo que ela não esteja à vista. Por exemplo: quero comer um ovo estrelado; o que devo fazer e por que ordem? – ir comprar um ovo, aquecer a frigideira, partir o ovo, etc. Para um mesmo problema, cada tipo de pergunta que fizermos conduzir-nos-á a um tipo de resposta diferente.

O primeiro princípio fundamental da lógica estabelece que domínios diferentes não podem ser misturados. Isto é fácil de perceber no dia-a-dia: significa que as leis e conclusões a que chegamos no domínio específico dos mamíferos não podem ser aplicadas aos peixes; que as regras do futebol não podem ser aplicadas no basquetebol; e assim por diante.

O nosso ponto de partida será, portanto, o da separação rigorosa dos domínios.

As 3 perguntas essenciais

Ao falarmos de política, falamos de questões sociais e ideológicas, de mundividências e formas organizativas da sociedade. Neste âmbito genérico existem apenas 3 tipos de perguntas a considerar. Cada uma delas perguntas irá conduzir-nos a domínios diferentes. É preciso conhecê-las bem, para que os domínios não se misturem, causando a maior confusão.

É claro que os 3 tipos de perguntas podem ter imensas variantes. Vamos resumi-las em 3 fórmulas típicas, para efeitos práticos:

Porquê? – esta pergunta coloca-nos irremediavelmente no domínio da fé, ou da religião, ou da mítica.
Como? – esta pergunta coloca-nos no domínio da ciência, da tecnologia ou da lógica pura.
Para quem? – pertence ao domínio político. Quem souber fazer esta pergunta sabe, automaticamente, fazer política – tão simples quanto isso.

Talvez estas 3 categorias genéricas pareçam intimidantes à primeira vista. Um exemplo muito simples (e muito clássico) mostra-nos a sua simplicidade: olhemos para o universo que nos rodeia (coisa que os seres humanos não conseguem deixar de fazer pelo menos desde que temos testemunhos culturais da sua existência) e apliquemos as 3 perguntas.

Porque existe o universo? – a resposta pertencerá necessariamente ao domínio da fé, da religião ou da mitologia. Tanto quanto sei, a esmagadora maioria das culturas (para não dizer todas) colocou esta pergunta e construiu uma resposta, cada qual à sua maneira. É o caso de um dos mitos mais maravilhosos e elegantes que conheço, proveniente de uma determinada cultura africana, sobre a criação das estrelas no céu; curiosamente, nesta explicação mítica encontramos entrelaçada a demonstração do papel da mulher africana na repartição social do trabalho. Já no caso da cultura ocidental monoteísta a resposta consiste numa valente trapalhada, onde se misturam vários mitos de várias culturas, em prejuízo da simplicidade. Mas em ambos os casos existe uma mesma entidade totalmente abstracta, mais displicente num caso, mais intrusiva no outro, à qual foi atribuída uma anima (um sopro, uma vontade todo-poderosa, uma intenção), que um dia, por desfastio, resolveu criar o universo.

Como se formou o universo? – e zás!, ao fazer esta pergunta mergulhamos a fundo no domínio da ciência. Todos os tipos de pergunta e resposta têm como condição necessária a inteligência, a imaginação, a curiosidade. No caso da pergunta porquê?, estes elementos são suficientes; mas no caso da pergunta como? são necessários milhentos dados relativos ao próprio objecto da curiosidade; a sua recolha pode levar milénios – ou seja, a resposta pode ficar suspensa durante muito, muito tempo.

Quem beneficia do universo?, ou: a quem pertence o universo?, ou: … – aí estamos nós em pleno domínio da política. Colocar esta pergunta de forma constante e sistemática significa fazer política. Assim, por exemplo, quando nos perguntam se achamos que o actual sistema económico é bom ou mau, existem várias respostas legítimas: a da fé, a da ciência, etc. A resposta política implica devolver a pergunta na seguinte forma: bom ou mau para quem? Como a própria expressão quem sugere, a ausência desta pergunta implica, de forma radical e irremediável, retirar a pessoa humana de todas as equações.

É claro que os 3 tipos de pergunta implicam todos eles a capacidade de fazer outra pergunta prévia: quê? É ela que define o objecto da curiosidade e do estudo. Sem ela, corremos o risco de confundir baleias e peixes.

Os templos da fé

Olhando com atenção para os meios de comunicação dominantes, verificamos que a pergunta omnipresente é: porquê? Os meios de comunicação mainstream são, na actualidade, os substitutos dos clássicos templos de celebração da fé.

O sucesso destes templos e oráculos tem a ver com algo extremamente primitivo, uma constante de toda a humanidade, uma necessidade compulsiva que encontramos logo numa fase tenra da infância e que se expressa através da mania de perguntar porquê a propósito de tudo e de nada.

Na linguagem comum confunde-se muito a natureza da pergunta porquê?, com como? e com quem? Esta confusão deve-se ao simples facto de a escola não fornecer pistas para a organização do pensamento a este nível. Perante esta falha, uns encontram tempo e paciência para resolver a confusão; outros não.

No discurso quotidiano da comunicação social a ausência da pergunta para quem? acarreta a nulidade absoluta duma perspectiva política das coisas; alimenta a fé, mas não permite resolver qualquer problema social e político.

Nos meios de comunicação social mainstream, como nos templos clássicos, a pergunta política – directa, inequívoca –, é praticamente tabu. Isto não significa que os seus sacerdotes não defendam um determinado território político. Simplesmente é-lhes vedado abordar directamente esse domínio. Trata-se de uma norma de comportamento não expressa mas muito eficaz. Desse ponto de vista, a censura existe hoje com renovada força nos meios de comunicação social; pouco carece de vigilantes e censores, como acontece com todas as normas sociais comummente aceites e tacitamente impostas – ninguém anda nu na rua (ou pratica qualquer outra atitude fortemente ofensiva da moral vigente), mesmo sabendo que não existe polícia a vigiar.

Os terreiros da política

Por detrás da pergunta para quem? escondem-se algumas evidências. Uma delas é o facto de toda a gente ter interesses próprios. Esses interesses, que começam por ser pessoais, podem congregar-se em interesses comuns de grupo. É bom não esquecer que noutras línguas a palavra interesse tem um sentido extra que foi elidido na língua portuguesa: juro.

A presença do interesse justifica que, se não quisermos ser prejudicados, temos de colocar a pergunta política perante certas afirmações e temas:

A segurança social é insustentável – pergunta: para quem?
Existe uma crise económica mundial – pergunta: para quem?
Tem de haver desenvolvimento económico – pergunta: para quem?
A Europa … – pergunta: qual Europa de quem?
O país … – pergunta: qual país de quem?
A economia … – pergunta: de quem?
A aplicação das regras … – pergunta: a quem?
Etc.

Fazer política começa nessa pergunta singela. Encontrar uma resposta política pode nalguns casos requerer uma quantidade de informação considerável, como acontece com a ciência. Mas na maior parte dos casos, verdade seja dita, a resposta pode ser encontrada da maneira mais simples e imediata, se nos ativermos ao domínio político. O único grande problema, de facto, provém na maioria das vezes da mistura (ilegítima do ponto de vista lógico) entre diferentes domínios. Muitas vezes as pessoas perguntam para quem?, mas logo a seguir começam a misturar respostas que nada têm a ver umas com as outras – misturam quem, como, porquê. O resultado é desastroso, faz lembrar uma espécie de batido de sardinha, cacto e coco.

Perguntar porquê é uma necessidade incontornável do espírito humano; seria uma batalha perdida e inútil combatê-la. Há apenas que confiná-la ao seu próprio domínio.

Perguntar como é igualmente um impulso inevitável para muitas pessoas. É ele que nos permite compreender como funciona o universo, como funciona a circulação sanguínea, como se mete um avião no ar, como funciona a economia (e neste particular o estudo marxista da economia já provou ser inexcedível), etc. Mas seria um erro tremendo pensar que, ao saber como funciona a economia capitalista, por exemplo, ficamos aptos para intervir politicamente. Não existe qualquer aptidão política enquanto não for feita a pergunta essencial (acompanhada ou não, tanto faz, dos esclarecimentos da pergunta científica ou da pergunta de fé): a quem, de quem, para quem?

Por fim, uma última nota: o termo quem não pode referir-se jamais a entidades inteiramente abstractas (o que nos faria recair na pergunta da fé) – tem de referir-se a pessoas de carne e osso, ainda que tomadas num conjunto categorizado (ou seja, num domínio organizado do pensamento).

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