11/03/13

Palavras tabu

Um belo dia, aliás fim de noite, foram encontrar Tristan Tzara à porta do Cabaret Voltaire, a caminhar furibundo de um lado para o outro da rua. O público já tinha saído da sala, ordeiramente, satisfeito com o que tinha visto. «Estamos a fazer qualquer coisa profundamente errado – queixava-se Tzara –, o público já não nos parte a casa toda, como costumava acontecer todas as noites.»1

Mais uma vez – e desta feita a propósito dos dois últimos artigos aqui publicados sobre ofensiva-defensiva na luta política e sobre a não radicalização em Portugal – tive de aturar comentários acerca do uso de «vocábulos políticos do século passado». Esta observação abreviada tem de ser entendida por extenso: 1) a terminologia/metodologia marxista seria um artefacto arqueológico bolorento, desadaptado da realidade presente; 2) quem a usa seria «antiquado».

Sou uma pessoa antiquada – continuo a usar os teoremas de Pitágoras

Os temas e vocábulos marxistas usados nos textos referidos são na sua maior parte provenientes duma disciplina de pensamento que genericamente se poderia chamar «teoria marxista da economia». Trata-se duma teoria com carácter científico, que procura sintetizar a realidade. Como todas as teorias, permite organizar o pensamento lógico de forma coerente. Como todas as teorias, deve ser constantemente aferida na realidade prática. Até à presente data, ainda não encontrei outra teoria específica que me permita analisar melhor certos aspectos da realidade em curso ou passada, ainda que reconheça as suas limitações.

O sucesso duma teoria científica mede-se pela quantidade de fenómenos futuros ou desconhecidos que consegue prever – por exemplo, prevejo que, se largar a maçã que seguro na mão, ela se dirigirá a uma velocidade calculável e uniformente acelerada em direcção ao centro da Terra. Segundo este critério, a teoria científica com maior sucesso desde sempre é a teoria quântica, porque permitiu prever uma quantidade enorme de fenómenos que nem sequer eram conhecidos da humanidade. A teoria marxista da economia (no seu núcleo central e clássico) tem esta qualidade e por isso mesmo pode ser considerada científica: permite prever em teoria o desenrolar de alguns fenómenos em curso e de fenómenos futuros. Dada a complexidade coloidal das matérias em causa (sociais, políticas, económicas, humanas, vivenciais), embora a teoria marxista possa prever certos fenómenos – a eclosão de uma nova crise capitalista, a reacção genérica das partes interessadas em jogo, etc. –, não pode no entanto prever que a crise capitalista mundial ocorrerá no dia tal, às tantas horas. É natural que assim seja, porque as crises capitalistas são, em si mesmas, um emaranhado de fenómenos cujas causas, manifestações e percursos se dilatam no tempo e sofrem o efeito dialéctico mútuo de factores determinantes, factores dominantes e factores secundários ou circunstanciais.

Face à persistência das críticas ao uso do vocabulário e da metodologia marxistas, devo dizer que, sim, sou uma pessoa antiquada. Em termos históricos, porém, a teoria marxista é uma criança acabada de nascer e pronta a crescer, se a compararmos com outras teorias muito mais antigas, algumas delas com milhares de anos de existência. Antiquado como sou, continuo a usá-las – e sempre com sucesso garantido. É o caso dos teoremas de Pitágoras ou de Tales de Mileto, das leis da aceleração e da gravidade, etc. Tudo roupa velha, mas... funciona! Quando encontrar outra teoria melhor, comprovada e aferida na realidade, não hesitarei em adoptá-la, por razões óbvias de eficiência.

O argumento da classe

Um dos argumentos apresentados para desclassificar e desactualizar a teoria marxista é o de que a classificação da sociedade por classes se tornou impraticável na sociedade contemporânea. O disparate deste argumento é tão profundo, que não creio seja possível dissuadir os seus arguentes sem os enviar de volta para a escola primária. O argumento pretende basear-se essencialmente no facto de, na prática, cada caso pessoal ser difícil de encaixar na teoria. Vamos dividi-lo por secções (e espero que secções não seja também uma palavra tabu).

A classificação é necessária a todo o estudo da realidade, porque não existe outra forma de organizar o pensamento lógico. Implica a criação conceptual – repito, conceptual, não real, e esta distinção entre realidade material e conceptual, entre realidade vivida e ficcionada, entre dia-a-dia e telenovela choca-se contra um dos limites mentais evidentes dos arguentes – de classes, ordens, espécies, etc. Não posso desenvolver aqui este complexo assunto, por falta de espaço, por isso remeto para os primeiros 10 anos de escolaridade.

As classes sociais já não fazem sentido? Não vejo em quê as condições materiais e microscópicas da realidade social de hoje sejam diferentes das de há século e meio – o merceeiro de hoje, tal como o do século XIX, continua a ser patrão e trabalhador, detentor dos meios de produção do seu negócio e ao mesmo tempo «escravo» da lógica interna desse mecanismo de produção, que o obriga a trabalhar 12 a 14 horas por dia. Onde está a diferença? O criador de textos duma agência publicitária continua a ter de vender a sua capacidade criativa (força de trabalho) a uma estrutura que concentra os meios de produção (que ele não possui) capazes de transformarem o seu texto em vídeo publicitário, tal como o escriturário do século XIX tinha de vender a sua capacidade de trabalho a um detentor dos meios de produção, sendo ambos, portanto e por definição, proletários. Onde está a diferença, ao fim de dois séculos? O gestor ou o capataz, ainda que se sintam subjectivamente mais próximos do patrão do que dos subordinados, continuam a depender da venda da sua capacidade de trabalho para sobreviver, até ao dia em que lhes seja oferecida uma quota na sociedade. Onde está a diferença? Tal como a classe canídea continua a ser cientificamente demonstrável e comprovável, independentemente de haver cães de regaço e grands danois, a classificação genérica das classes sociais continua a fazer sentido, porque não se baseia na forma, na análise superficial, mas sim na estrutura e funcionamento da sociedade capitalista, na sua genética, por assim dizer, e não na sua manifestação individual.

A classificação da realidade não tem de coincidir com a realidade material e microscópica. Aliás, só a ignorância poderia tentar comparar directamente duas coisas brutalmente distintas: a realidade material e a sua imagem abstracta ou conceptual. Por essa ordem de ideias, eu teria de deitar fora uma secção inteira da matemática – nunca encontrei na natureza um triângulo isósceles perfeito. Teria de deitar fora uma secção inteira da física e da mecânica – uma maçã nunca cai duas vezes à mesma velocidade, por força das variações de temperatura e pressão atmosférica. Em suma: teria de deitar fora toda a ciência.

Repito: uma teoria não é a realidade pontual. É a forma de organizar coerentemente o pensamento lógico (porque há outros tipos de pensamento igualmente válidos) acerca da realidade, permitindo prever (no âmbito da teoria) o desenrolar presente e futuro dos fenómenos. A teoria marxista é também uma técnica: permite actuar sobre a realidade – mas isso é outro extenso assunto que não cabe aqui.

E aqui chegámos finalmente ao âmago dos argumentos contra o núcleo científico da teoria marxista: esses argumentos configuram um movimento objectivo de regresso ao obscurantismo e à barbárie. E o facto de eu ser antiquado significa afinal que não deito fora 3000 anos de cultura, mesmo quando me mantenho atento a tudo quanto de novo vai sendo criado. Por isso mesmo tanto prazer extraio de uma música clássica como de uma boa peça de música electrónica ou de música concreta, ao contrário dos asnos que se julgam modernaços mas que nunca são capazes de estar um passo à frente de coisa nenhuma nem de apreciar uma composição de Pierre Schaeffer.


1 Versão dos acontecimentos históricos reescrita e abreviada à minha maneira.

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