27/12/11

Inevitável era a tua tia

Alguém dizia aqui há dias que a constante de todos os discursos, comentários e opiniões da actualidade é a palavra «inevitável», «inevitabilidade».
Para tentar perceber uma das facetas e significados desta teimosa constante, proponho que revisitemos dois velhos mestres: Paul Langevin e Albert Camus.

13/12/11

Aguinha!

Agüinha! Agüinha! Agüinha!

manifesto indolor, inodoro e insípido

Camaradas:
O simples facto de as pessoas continuarem a ter sede, de insistirem em beber, demonstra que todas as actuais marcas de água não saciam a sede.
É preciso acabar com a sede de uma vez por todas!
Por isso decidimos pôr fim ao sofrimento do povo, dessedentar as massas e começar a produzir uma água mais pura que a dos outros aguadeiros, incluindo o recém-formado Partido das Hormonas. A este não dedicaremos mais do que um período: os aguadeiros hormonados não matam a sede porque sofrem de ciclos quadrados, o que faz com que a sua água tenha vértices e arranhe na garganta, provocando ainda mais sede.

Apesar de a nossa água provir exactamente das mesmas fontes doutrinárias que a dos outros aguadeiros, que são as de Hidro e de Oxi, acreditamos que

a nossa água é mais pura, mais insípida, mais inodora, mais transparente, mas sobretudo mais dura!
A nossa água é mais pura e dura porque tem um neutrão a mais que as outras todas!

Camarada, junta-te a nós e vem fazer uma água mais insípida, mais inodora, mais dura!
Viva a água dura! Morte à sede!

11/12/11

Fugiu-lhe a boca para a verdade

O ex-primeiro-ministro José Sócrates afirmou, numa conversa informal, que as dívidas soberanas são eternas; que o seu pagamento integral será sempre impossível; e que apenas resta geri-las.


Quase todos os responsáveis e comentadores políticos entraram em histeria com estas afirmações, o que não deixa de ser significativo e até divertido.

A comoção das reacções causadas pela afirmação desta verdade elementar procura justificar-se nas responsabilidades de José Sócrates na gestão da dívida durante cerca de 6 anos de governo. Esta desculpa esfarrapada e despropositada não chega para disfarçar um facto: a tirada de Sócrates abala uma estratégia política (sobejamente usada pelo próprio Sócrates) que consiste em induzir na população um medo-pânico perante as consequências do eventual não pagamento total ou parcial da dívida externa. Se esta estratégia de medo fosse anulada, provavelmente assistiríamos à revolta de largos sectores da população que de momento aceitam submeter-se a terríveis medidas de austeridade em nome... do pagamento da dívida!

A rematar as suas declarações, Sócrates afirmou: «foi isto que eu estudei em economia». Se ele estudou ou não, não sei dizer, mas lá que tem razão, não restam dúvidas - os fundadores da economia como ciência (se é que tal coisa pode existir) bem o afirmaram há mais de um século. Daí para cá, a criação de dívida soberana como processo apropriação dos recursos colectivos por parte do capital privado tornou-se uma arte sofisticada.

Depois de, ao longo dos séculos, terem sido apropriadas todas as terras comunais, todos os meios de produção individuais e comunais, e toda a força de trabalho, onde hão-de ir os grandes interesses privados sacar novos capitais? Já nada mais resta para saquear, senão os recursos colectivos elementares (a água, o ar, o sol, etc.) e os recursos colectivos construídos (a segurança social, as pensões de reforma, os meios e vias de comunicação, saneamento, etc.).

O sistema de crédito obedece a uma regra básica e incontornável: para que o credor conceda um crédito, o devedor deve oferecer alguma garantia em troca - no caso do consumidor comum pode ser o seu salário ou a sua casa; no caso duma população inteira, a única garantia possível consiste nos recursos colectivos.

Quando uma dívida é integralmente reembolsada, as garantias oferecidas regressam ao seu dono original. Ora, se o credor pretende apropriar-se precisamente dessas garantias, então estaria trabalhando contra si próprio ao permitir a criação duma dívida passível de ser integralmente reembolsada. A única forma de o credor se apropriar da garantia que pretende adquirir (por exemplo, as pensões de reforma) consiste em fornecer um crédito em espiral, impossível de reembolsar. Se o credor não encontrar forma de gerar uma dívida impossível de pagar, então desiste do negócio - não fornecerá mais crédito, porque o interesse que o movia já não pode ser alcançado. Curiosamente, esta realidade é totalmente inversa daquilo que nos é explicado pelos responsáveis políticos e pela comunicação social, que passam a vida a ameaçar-nos de que deixaremos de ter crédito se deixarmos a dívida soberana entrar numa espiral imparável.

José Sócrates tem toda a razão no que disse. Fugiu-lhe a boca para a verdade, ao menos uma vez na vida. A única coisa que lhe faltou dizer foi que existem alternativas à gestão da dívida infinita - essas alternativas passam pelo repúdio do processo de endividamento.

07/12/11

Recrudescem as máfias, a corrupção policial, os pintas e a bestialidade

Épocas políticas de direita extrema e de extrema direita, como a que se vive hoje em Portugal (e de resto em toda a Europa), proporcionam sempre o florescimento das máfias, da corrupção policial, de chulos e gandulos. São períodos em que se tornam mais fortes, por vezes bem mais fortes que a lei, os esquemas de chulice e extorsão, o exercício de poderes ilegítimos, da prepotência, do bastão, da navalha e da pistola.

Nestas épocas, todas as ilegitimidades, brutalidades e esquemas mafiosos que já antes se desenrolavam subterraneamente, de forma discreta, começam a mostrar-se à plena luz do dia, uma vez que o alastramento de práticas, favores e cumplicidades mafiosas cria uma vasta teia que se estende desde os recantos mais obscuros da vida nocturna até aos mais altos gabinetes ministeriais.

Velhas práticas e concluios entre chulos, gorilas e polícias
Stuart Carvalhais
A existência de máfias apadrinhadas pela generalidade dos membros duma esquadra de polícia é uma prática velha. Assim, por exemplo, durante décadas os bares nocturnos do Cais do Sodré, em Lisboa, faziam uma doação mensal a uma associação sem fins lucrativos dominada por agentes da polícia. O esquema era perfeitamente legal, uma vez que as doações a associações sem fins lucrativos não ofendem a lei. A cada mês um dos donos de bar percorria todos os outros bares recolhendo os «donativos»; depois ia entregá-los em nome pessoal; desta forma, uma vez que havia muitos bares, aparentemente cada um apenas doava de ano a ano, ou de dois em dois anos, o que ajudava a que tudo parecesse bastante normal.

A invenção dessa espécie de instituição chamada «seguranças», também conhecidos por «gorilas», veio alterar um pouco a superfície do esquema, trazendo para a equação os ginásios, as quadrilhas de culturistas e outros que tais. No essencial, porém, tudo permanece igual - criam-se grupos de interesses, cumplicidades e favores que cozinham uma velha receita associativa assente em três ingredientes essenciais:
  1. Uma fauna local de lumpen, chulos, carteiristas e vendedores de droga. Além de exercer o seu «ofício», esta fauna, conhecendo bem o terreno em que se move, constitui os olhos e os ouvidos dos gorilas e dos polícias; patrulha o bairro, transmite recados, informa sobre a localização de possíveis vítimas.
  2. Um grupo de controle constituído por «gorilas» e polícias que exercem ilegalmente serviços de segurança. Esta escumalha controla a fauna de carteiristas, chulos e dealers, criando-lhes condições para actuarem na área de influência do bar; saca-lhes percentagens e favores; livra-os de maus encontros com a lei; permite-lhes inclusivamente o uso de armas brancas e de fogo dentro do próprio bar (para assaltarem clientes na casa de banho, por exemplo, enquanto os seguranças vedam o acesso a essa área para que eles possam «trabalhar» à vontade).
  3. Um grupo de polícias corruptos e necessariamente capazes das mais horríveis brutalidades, que dão cobertura e protecção aos dois grupos anteriores - e, obviamente, também os chulam.


Como conseguem as máfias implantar-se?

Os factores que permitem a implantação e sucesso destas máfias são de três tipos:

1. Factores intrínsecos às máfias.
Muito simplesmente, as máfias impõem-se pela força bruta. Se, por exemplo, um dono de bar, contactado por um polícia mafioso no sentido de aceitar os seus «serviços» de segurança e protecção, insiste em recusar, pode acontecer-lhe que no fim-de-semana seguinte veja o seu estabelecimento espatifado por um grupo desconhecido de vândalos, os clientes assustados e com pouca vontade de lá voltarem, além das possíveis sevícias físicas a que fica sujeito. Na semana seguinte, sem hesitar, aceita os serviços de protecção. O problema é que, embora aparentemente se tratasse apenas de aceitar um «segurança» (que na realidade jamais se prestará a correr o mais pequeno risco pessoal para socorrer seja quem for em caso de aflição ou pacificar qualquer tipo de situação), eis que surge vindo do nada um exército de chulos, carteiristas, vendedores de coca [refiro-os por via da desonestidade e crueldade, não por via da coca], amigos e ajudantes do «segurança», etc. O bar terá de suportá-los e alimentá-los a todos.

2. Factores intrínsecos aos bares.
Por regra os donos dos bares, os gerentes e os empregados de bar são uma cambada de tontos sem qualquer espécie de consciência política, cívica ou ética. Alguns deles, aliás, emergiram desse mesmo lodaçal mafioso, onde recolheram o pecúlio com que montam o bar. Por conseguinte não lhes passa pela cabeça recorrer às instituições judiciais de protecção especial e combate à corrupção e ao banditismo; e também não sentem qualquer prurido ao verem um cliente ser espancado até à morte por razão nenhuma, como aconteceu a semana passada no Maria Caxuxa, no Bairro Alto - cujo dono do bar, inquirido sobre o assunto, nem sequer se lembrou de perguntar pelo estado da vítima, limitando-se apenas a manifestar a sua enorme aflição pelo mal que poderia vir ao negócio, se familiares e amigos da vítima começassem a propagandear o acontecimento (coisa que os «seguranças» se encarregaram imediatamente de dissuadir com avisos «subtis» e falsas testemunhas). Em suma, do lado dos donos de bar o sistema é alimentado por um elevadíssimo grau de cobardia e inconsciência cívica (a roçar a estupidez).

3. Factores  sociais genéricos
O ambiente político de direita, como já referimos, é ele próprio um húmus de corrupção, brutalidade, ilegalidade e inconsciência cívica e ética. Os políticos de extrema direita encontram-se rigorosamente ao nível das máfias lumpen nos seus actos e nos seus métodos, apenas se distinguindo (alguns) pela gravata, visto que todos usam o mesmo tipo de carro ou de jipe.

Um exercício de escala
Os chulos e máfias de bairro quase parecem inocentes, por comparação com os grandes intermediários, as grandes superfícies e outros abutres de mercado; estes, actuando à escala dum país inteiro, forçam a aprovação de leis no parlamento nacional e europeu e criam uma força policial de tipo pidesco, chamada ASAE, para arrasarem brutalmente a concorrência do pequeno comércio. É nesta altura que convém recordar que qualitativamente é tudo o mesmo - não nos deixemos levar por argumentos quantitativos; o chulo de bairro e o chulo dos corredores parlamentares usam os mesmos métodos (corrupção e exercício de força ilegítima), buscam os mesmos fins (proveito pessoal à custa do prejuízo alheio ou mesmo da vida alheia), ostentam a mesma ausência completa de princípios cívicos e éticos - apenas as quantias extorquidas diferem imenso.

A chulice destas mega-máfias atingiu recentemente o cúmulo, quando as grandes superfícies e distribuidores descobriram que lhes sai mais barato contratar 30 advogados para aldrabarem os contratos de fornecimento e retribuição, do que pagar aos fornecedores. Assim, neste momento, existem dezenas, talvez centenas ou milhares de pequenos-médios fornecedores dentro do mercado nacional que estão a ir à falência por não receberem a retribuição dos produtos que forneceram. A desfaçatez chega mesmo ao ponto de, em vez de receberem, terem de pagar indemnizações, graças às habilidades dos gabinetes de advogados e às letras miudinhas dos contratos.

A responsabilidade do público e do cidadão comum

Se, como aconteceu há dias no Maria Caxuxa, um homem é espancado possivelmente até à morte perante uma assistência de 40 clientes e afinal nem uma só testemunha se levanta, temos de concluir que algo de muito podre se passa neste reino. A corrupção material e intelectual parece ter alastrado como peste a toda a população.

Que uma grande fatia dessa clientela (que, já agora e por sinal, tem pretensões a fazer parte da jovem nata intelectual lisboeta...) seja constituída por choninhas incapazes de tomarem uma atitude, não espanta. Mas que, ainda assim, não surja nem ou uma, nenhum, que se preste a denunciar o acontecimento e a dizer alto e bom som que uma indústria que compactua com a corrupção, a brutalidade assassina e a chulice não merece ser visitada nem alimentada... bom, nesse caso temos de reconhecer que estamos perante uma degradação generalizada dos costumes e das mentalidades.

[As excepções seguramente perdoar-me-ão o tom generalista usado - tendo consciência dos factos, saberão que não me dirijo a eles mas sim a uma realidade que certamente os importuna tanto no campo dos princípios como do negócio.]

06/12/11

O clube do consenso e da reestruturação

[fonte: Rui Viana Pereira, in CADPP]

Ora aí está – o «consenso» e a «reestruturação» tornaram-se o último grito da moda. Poderíamos mesmo baptizar esta nova moda de «consenso reestruturado».
Não há professor de economia, do MIT às universidades da Alemanha, passando por todos os grandes centros de hegemonia que ficam pelo caminho, que não fale da necessidade de reestruturar e renegociar a dívida soberana.
Banqueiros, dirigentes da UE, comentadores, politólogos e sociólogos amantes do regime, todos defendem, às claras uns, à socapa outros, a necessidade de reestruturar e renegociar a dívida dos países periféricos.

A moda do consenso arredonda a saia

Além disso, cada vez mais gente adere a uma nova moda: o consenso. Liga-se a televisão, e pimba!, lá está o último grito da moda proclamando a necessidade de alcançar o consenso, as virtudes do consenso, as qualidades sensuais do consenso. Todos os problemas, todos os sofrimentos, todas as falências seriam resolvidas na Europa, graças às virtudes medicinais do consenso (seja lá isso o que for). O Paulo Portas deve estar impante, visto ter sido ele um dos primeiros por cá a tentar vender o produto. [...]

Reestruturação da dívida – a eterna receita do capital ganha novos adeptos

Que o FMI defenda as qualidades milagrosas da reestruturação, não espanta – fá-lo sistematicamente há 20 anos na América do Sul e noutras partes do Mundo, sempre com grande sucesso financeiro (para os banqueiros que representa, entenda-se). Que os poderes públicos europeus e o Banco Central Europeu venham agora adoptar as mesmas receitas, tão-pouco espanta – as soluções neoliberais não abundam por aí, é natural que se repitam até à exaustão.
O que eu acho extraordinário é que certas figuras e correntes da esquerda portuguesa apostem cada vez mais nessa «solução». No preciso instante em que as instituições financeiras e europeias já estão a negociar nos bastidores a renegociação, reestruturação e ajuste estrutural da dívida, as referidas figuras e correntes multiplicam-se em declarações e planos para ... reestruturar a dívida!
Creio mesmo que se preparam para fazer, à custa dum enorme dispêndio de suor e militância graciosa, aquilo que os banqueiros e os tecnocratas europeus já fazem a preço de ouro: uns calculozitos para reestruturar a dívida. Todos eles concorrem no mesmo: reestruturar e renegociar a dívida, «ajustar» os planos de «desenvolvimento» – apenas uns são tontos e o fazem de borla, enquanto outros são espertos e enriquecem sem limites.
Que coisa surpreendente, tanto consenso duma assentada só!

Sejamos sérios – anulemos a dívida e todos os factores de endividamento

Como o CADPP afirma no seu manifesto, reestruturar, renegociar ou mesmo anular partes desta dívida não passa de panaceia, de curtíssima visão das coisas.
Minorar de alguma forma esta dívida para contrair outra igual logo a seguir é um voo baixo que ultrapassa a barreira do disparate.
Além disso... esta dívida ou não é nossa, ou já a pagámos há muito tempo!
Há quem defenda que é muito difícil explicar à população portuguesa a justeza de anular esta dívida. A mim o que me parece realmente difícil é, depois de um trabalhador ter andado uma vida inteira a descontar para a reforma, explicar-lhe que não pode recebê-la porque precisamos desse dinheiro para salvar da falência os bancos privados.
A crise da dívida resulta da transferência de todos os recursos colectivos, de todos os bens, de toda a força de trabalho para as mãos do grande capital privado, a custo zero.
Vamos lá exigir a anulação desta dívida, já que é urgente salvar da fome, do desespero e do suicídio milhões de trabalhadores. Mas não nos esqueçamos de eliminar os processos políticos e económicos que deram origem a esta dívida – e às próximas, se não atalharmos.