27/12/11

Inevitável era a tua tia

Alguém dizia aqui há dias que a constante de todos os discursos, comentários e opiniões da actualidade é a palavra «inevitável», «inevitabilidade».
Para tentar perceber uma das facetas e significados desta teimosa constante, proponho que revisitemos dois velhos mestres: Paul Langevin e Albert Camus.


Recordando Paul Langevin
Andaria eu por volta dos meus 16-18 anos de idade, quando me veio parar às mãos «Pensamento e Acção», de Paul Langevin. Não sei que é feito desse livro e portanto não posso citá-lo com precisão; dele apenas guardo uma nebulosa memória sintética com mais de 40 anos de poeira em cima. O certo é que ainda hoje continuo a prestar muito mais atenção aos actos do que às declarações teóricas, e a considerá-los a única expressão rigorosa do pensamento de cada um.

Em 1 de Maio de 1933, Hitler, contemporâneo e carcereiro de Langevin, promove uma jornada dos trabalhadores, discursando inflamadamente sobre a necessidade de defender os direitos de quem trabalha. À primeira vista, estaríamos perante um firme defensor dos trabalhadores e do Estado social. No dia seguinte, porém, é emitido um decreto que proíbe os sindicatos, põe fim a toda a actividade sindical, e confisca os bens dos sindicatos.

Hoje, tropeçamos diariamente em declarações de princípios que no dia seguinte são contrariadas por acções concretas; em ministros que declaram a justeza do direito à saúde e no dia seguinte reduzem o número de enfermeiros e médicos de um serviço nacional de saúde já deficitário de técnicos; que afirmam a necessidade de desenvolver a periferia portuguesa (o interior), aproximando-a do litoral mais desenvolvido, e no dia seguinte mandam encerrar as escolas do interior; que encomendam auto-estradas de 300 km entre Lisboa e o Algarve, apenas com duas saídas para terras alentejanas (por coincidência, nos lugares onde já existe indústria); etc.

É necessária esta introdução para se perceber por que não me ralo eu, por exemplo e ao contrário de Francisco Louçã, com certas declarações da extrema direita em defesa da suspensão do serviço da dívida, nem sinto vergonha ou necessidade de me desdizer só porque a extrema direita parece defender o mesmo que eu. A diferença é que no meu caso (que é o caso de numerosos outros activistas) existe uma coerência entre pensamento e acção, ao passo que as bandeiras da extrema direita apenas são hipocritamente agitadas por oportunismo político. Desdizer agora o princípio da suspensão da dívida, ou outro qualquer, apenas para me demarcar da direita, seria o mesmo que desdizer todos os direitos dos trabalhadores apenas para me demarcar de Hitler - seria estúpido e infantil, que me perdoem os visados mas hoje não tenho paninhos quentes aqui à mão.

Uma grande parte, a maior parte da esquerda partidariamente organizada, incluindo as gerações mais jovens, encontra a raiz da sua formação organizativa e metodológica na escola organizativa, política e ideológica do PC tal como ele era no tempo da clandestinidade. Após o desmantelamento das redes anarquistas e anarco-sindicalistas, essa foi a única escola disponível durante largas décadas, e ainda hoje marca todas as organizações de carácter partidário, incluindo aquelas que se afirmam antiestalinistas - daí os vícios de sectarismo, de controle totalitário, de oportunismo político, de oportunismo histórico (tendência para a reescrita da história), de intriga e por vezes até de denúncia difamatória. Qualquer pensador livre e independente posto em confronto com uma organização de carácter partidário em Portugal corre os mesmos riscos que Tito: ser condenado à morte e ter a cabeça a prémio apenas por não fazer «parte» ou pelo menos não «alinhar».

Recordando Albert Camus
Anos mais tarde, adquiri outro livro de cabeceira: «O Homem Revoltado», de Albert Camus. Foi juntar-se ao livro anterior para me ajudar a construir uma completa arquitectura de pensamento e acção cívica e militante.

O livro de Camus é um pouco confuso e demasiado atravessado por questões colaterais, que ele à época teve de abordar por força das circunstâncias históricas; mas ainda assim não é difícil decantar a essência o livro.

Uma das coisas que Camus nos propõe como axioma fundamental de toda a filosofia, toda a ética e toda a política é a impossibilidade absoluta de «ler» o futuro. Não podendo nós ler o futuro sem incorrermos no crime de charlatanice, fica definitivamente arredada a tentação de justificar os actos presentes em nome duma ideia de futuro supostamente justo e inevitável. Perante esta impossibilidade de justificarmos os meios em função de fins «inevitáveis», por mais justos e bondosos que eles possam parecer, resta-nos a possibilidade de garantir a justeza impecável dos nossos actos presentes - ou de sermos julgados e condenados pela incorrecção dos mesmos e suas consequências, que podem no extremo implicar os mais sangrentos actos contra a humanidade.

Os áugures da actualidade
As palavras de Langevin e Camus foram, à época, condicionadas pelo combate urgente à hipocrisia de partidos e regimes que não só estavam a afastar-se do socialismo, como estavam mesmo a denegrir a sua imagem; aliás, que estavam cientes desde o início, como se comprova por documentos escritos, da impossibilidade de construir uma sociedade mais justa e avançada em situações como a Rússia do início de século XX. A hipocrisia da defesa desse falso socialismo, que não passou de um compasso de espera graças ao sacrifício de milhões de pessoas, que ceifou vidas e semeou a maior confusão nas mentes ocidentais, é hoje substituída por uma classe que se comporta como uma seita de sacerdotes detentores da fé e da verdade absolutas: os economistas. E quando digo economistas refiro-me a todos, tanto os neoliberais, como todos os outros, incluindo os ditos de esquerda.

Não se passa um único dia em que os áugures da economia não venham «ler» o futuro nas tripas ainda fumegantes duma sociedade onde os direitos humanos, laborais, cívicos e democráticos jazem esventrados.
Desafio qualquer um a mostrar-me uma declaração, assente na autoridade dos economistas, que não consista de forma expressa ou tácita numa solução presente justificada no vaticínio do futuro. Como hoje em dia as bolas de cristal já não gozam de muito crédito público, o economista socorrer-se-á de uns quantos malabarismos pseudocientíficos.

Todos os dias os economistas pedem mais sacrifícios em nome de um futuro (a prazo de dias, de semanas ou de meia dúzia de anos) que eles se arrogam de saber «ler». A única coisa que estes cartomantes se recusam a «ler» é o significado actual dos seus actos, das suas recomendações, das suas medidas.

A arrogância dos economistas, que tudo julgam poder entender e comandar na sociedade, é blindada à compreensão desta verdade tão simples: nem é possível ler o futuro, nem é possível justificar o presente em função dum futuro antevisto e «inevitável»; pelo contrário, são os actos presentes que justificam (ou condenam) o futuro de todos nós.

Um economista que se julga no direito de propor sacrifícios actuais às populações vivas, em nome da grandeza de um futuro «antevisto», é um Hitler que não hesitará amanhã em mandar chacinar os ciganos, os sem-abrigo, os desempregados de longa duração (em geral qualquer trabalhador desempregado com mais de 35 anos) ou pelo menos condená-los ao trabalho forçado. A rota de desgraça humana e opressão que estes economistas escolheram é tão clara, como clara foi a rota de Hitler.

As provas, postas à disposição de todos quantos duvidam dos princípios aqui enunciados, começam a tornar-se visíveis em diversos pontos da Europa - assim as medidas dos governos alemão, francês, húngaro, italiano, português, grego, etc. Infelizmente, esperar calmamente por provas claras, para ter certezas sobre o que já se entrevê por detrás de véus bastante diáfanos, pode vir a revelar-se fatal para os destinos da humanidade. Estarei eu a sondar a bola de cristal? Não, estou apenas a olhar para o que está vivo e presente à minha frente - não poderei jamais adivinhar o futuro, mas sei que o presente o condiciona. É este o paradoxo de Camus.

1 comentário:

  1. «É preciso construir o futuro!» - dizes.
    Agora percebo porque afundas o presente. Para instalares os alicerces.
    [Alberto Pimenta. Os entes e os contraentes, 1971]

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