26/08/11

Infantilismos políticos (1)

É certo que comparações, metáforas e analogias não demonstram coisa alguma; podem até condicionar erroneamente a visão das coisas. Por outro lado, são geralmente uma boa forma de estimular a imaginação, especialmente quando se esgotaram já todos os outros meios de comprensão e explanação das coisas. Por isso vou arriscar-me a comparar a acção política e cívica a um jogo de xadrez.

Tal como no xadrez as peças não se movem sozinhas se não houver um jogador, assim também os movimentos sociais fenecem se não existir acção política direccionada. A acção política apenas tem futuro quando: 1) faz jogadas; 2) é capaz de imaginar e prever algumas jogadas de avanço.

Tal como no xadrez existe um tempo limite para efectuar as jogadas, passado o qual a derrota é automática, assim também na acção política a incapacidade de resposta aos acontecimentos implica a derrota política automática e a morte dos movimentos sociais. As pessoas acomodam-se com facilidade.

Seguindo esta analogia (embora, repito, as analogias possam ser traiçoeiras), um exemplo típico foi a manifestação de 12 de Março de 2011 – seguida da morte súbita do movimento social por falta de antevisão dos passos seguintes a dar. Os 400.000 portugueses que saíram à rua a 12 de Março foram automaticamente derrotados a seguir, por falta de plano de acção. A única coisa que restou de tudo isso foi a fama mediática de um pequeno número de pessoas que a convocaram – melhor que nada.

Continuando a seguir a analogia, temos o caso extremo da maioria das organizações da esquerda portuguesa de há muitos anos a esta parte – gritam «xeque-mate!» sem chegarem sequer a fazer a primeira jogada. Resultado: não só se tornam um alvo do ridículo, como estão derrotadas à partida.

O estudo dos movimentos cívicos, operários, e revolucionários ao longo dos últimos 150 anos demonstra uma coisa irritante talvez, mas inegável: apenas é possível obter vitórias quando entram em cena um conjunto de jogadores de alto gabarito. A história fornece uma lista aparentemente infindável destes jogadores – Lenine, Trotski, Kemal Atatürk, Mahatma Gandhi, Nelson Mandela, Fidel Castro, etc., já para não citar os de extrema direita. Mas se olharmos bem para o mapa da História e para a forma como eles se distribuem no espaço e no tempo, concluímos que afinal não foram assim tantos. E quando eles desaparecem sem serem substituídos por outros, os movimentos sociais caem no vazio e a História ou o Tempo parecem dar um passo atrás.

O que têm estes jogadores de especial? O que é que lhes permite pôr o tabuleiro em movimento e proporcionar vitórias? É simples: 1) não gritam «xeque-mate» a cada jogada e fora de tempo; comer um simples peão de xadrez e gritar «xeque-mate!» implica a desclassificação automática; 2) não ficam parados à espera que aconteça qualquer coisa; pensam nas jogadas e fazem-nas através da acção política concreta, não se limitando a produzir lindos textos teóricos; 3) quando fazem uma jogada, ela não é mais do que a preparação de muitas outras pensadas antecipadamente; por isso cada jogada não é um acto vão, tem um significado e um objectivo preciso; 4) sabem exactamente quando é preciso atacar e quando é preciso defender; 5) sabem que às vezes uma defesa activa implica um ataque fictício ou aparentemente inútil, mantendo o adversário ocupado; 6) embora saibam que o xeque-mate tem de ser feito atacando uma peça bem específica, são pacientes: não se importam de perder tempo, atacando outras peças aparentemente secundárias, minando o campo adversário; estes ataques parecem apontar em direcções disparatadas, mas por detrás de tudo isso existe um intuito firme e constante, ainda que pouco evidente: fazer xeque-mate ao rei.

Desgraçadamente, há muito tempo que não surgem em Portugal jogadores deste calibre no campo da esquerda revolucionária. Em compensação, prolifera uma plêiade de «críticos» (como eu...), de treinadores de bancada – o tabuleiro encontra-se intacto e imóvel, por falta de jogadores capazes de porem as peças em movimento.

Um caso concreto de jogo político: a movimentação social por uma auditoria cidadã

Nos últimos meses tem havido bastante debate, nos meios activistas, acerca da proposição (ou não) de um processo capaz de pôr em marcha a movimentação social sob a bandeira duma auditoria cidadã. Existem numerosos opositores a esta «jogada». Os argumentos contra são de carácter bastante ideológico, abstracto, podendo ser resumidos mais ou menos assim: a dívida soberana não é um problema de fundo, sistémico; é uma consequência do sistema político e económico em que vivemos; o que interessa não é atacar a consequência, mas sim a causa – os fundamentos do sistema; logo, propor uma auditoria cidadã é uma perda de tempo e desvia as atenções da questão de fundo. Em suma, trata-se de saltar directamente para o xeque-mate, dispensando as 40 jogadas intermédias.

No entanto, uma vez que não é de forma alguma possível atacar de frente o âmago do sistema (encontra-se ainda num terreno por minar, num bastião defendido por uma fileira de peões, bispos, torres e cavalos), estes activistas cruzam os braços e não fazem qualquer tipo de jogada – limitam-se a esperar por um milagre e entretanto vão gritando exaltadamente «xeque-mate!», sendo automaticamente desclassificados. (Também os há mais tíbios, que se limitam a gritar «xeque!».)

A mim, pelo contrário, parece-me que a proposta de auditoria cidadã (ou «investigação da dívida», como lhe venho chamando ultimamente em atenção a quem mal-entende a expressão «auditoria») seria uma jogada defensiva suficientemente poderosa para fazer tropeçar aqueles que vêm atacando furiosamente a democracia, o estado de direito, a dignidade humana, enfim, os interesses da maioria da população.

Entretanto, está prevista a participação nacional na manifestação internacional convocada para 15 de Outubro próximo. Independentemente desta acção de massas vir a ter 100 presenças ou 100.000, se ela for inconsequente, se não for em si mesma a preparação do passo seguinte, resultará numa derrota grave. Ora um dos passos seguintes a dar poderia ser a congregação de esforços unitários e movimentações sociais para pôr em marcha uma auditoria cidadã. Veremos o que os movimentos cívicos são capazes de produzir.

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