03/05/11

A Troika e a estratégia do medo

«Podemos dizer que esta foi uma crise financeira. Mas também podemos dizer que foi, fundamentalmente, uma crise democrática. Quando decidi colocar a questão em referendo, disse que ao olhar para todas as análises fiquei, no fim, com uma escolha: entre as exigências dos mercados financeiros, por um lado, e a democracia, por outro, eu tenho de escolher a democracia. Porque a democracia é muito mais fundamental para a nossa sociedade do que os mercados.»
[Presidente Islandês Ólafur Ragnar Grímsson, PhD em Ciência Política, em entrevista para a Revista Visão, 28-Abril-2011]

A teoria da inevitabilidade

A comunicação social portuguesa tem sido o artilheiro de serviço numa barragem de fogo patrocinada pelas duas chamadas «Troikas» – a externa (FMI+Banco Central Europeu+Comissão Europeia) e a interna (PS+PSD+CDS).
A todas as horas do dia e da noite os órgãos de comunicação transmitem a tese da inevitabilidade da intervenção externa, deixando o público aterrorizado perante a ideia de que a Troika possa amuar e ir-se embora sem deixar cá uma «ajudinha».

A intervenção da Troika e a especulação financeira são-nos apresentadas como uma espécie de catástrofe natural inelutável, à semelhança dos terramotos, dos furacões, das cheias – e não como opções políticas tão passíveis de ser aceites ou rejeitadas como outras quaisquer.

A eficácia desta campanha assenta um princípio simples: uma mentira repetida até à exaustão acaba por tornar-se verdade na cabeça do ouvinte.

Apesar de haver alternativas à intervenção da Troika, os comentadores ou não as mencionam ou referem-se a elas com sorrisos de esguelha, como se fossem coisa pueril e desprezável.

A teoria do crime e castigo

A propaganda pró-ingerência da Troika externa, a que a Troika interna chama graciosamente «ajuda externa», atingiu na semana passada um novo nível qualitativo com a campanha lançada pelo PP-CDS.

Segundo os porta-vozes centristas, os cidadãos que «defendem o não pagamento da dívida» (assim se referem as Troikas a qualquer um que não apoie o FMI) seriam perigosos irresponsáveis, e a Argentina e o Brasil seriam exemplos de países sujeitos ao colapso económico por terem supostamente recusado o pagamento da dívida, colapso esse acrescido de fome, caos, arruaça, perda de bens e saque da propriedade privada. Enfim, um autêntico Armagedão.
Ainda por cima, segundo Paulo Portas, esses países teriam sido finalmente obrigados a pagar a dívida externa em dobro.

Ou seja, à teoria da inevitabilidade soma-se agora a teoria do crime e castigo.

Poderíamos desprezar este tipo de mentiras e votá-las ao esquecimento, se não fosse o caso de a comunicação social ter a capacidade de lhes emprestar uma força que não têm; uma força que, não sendo atalhada, pode mesmo acabar por levar de vencida toda a inteligência das coisas e do público, e isso mesmo justifica a minha insistente referência ao papel da comunicação social neste processo.

A teoria do papão interno

Segundo Paulo Portas, «são irresponsáveis perigosos aqueles que defendem a recusa de pagamento da dívida externa» (cito sinteticamente).

Em primeiro lugar, o pressuposto é desonesto – ninguém propôs semelhante coisa. Paulo Portas está a inventar inimigos internos que não existem, cria um ambiente de imaginação paranóica, agita papões que não possuem qualquer sustentação na realidade.

Não existem opositores à intervenção (leia-se ingerência) financeira externa que tenham defendido o incumprimento das responsabilidades perante a comunidade internacional – exactamente na mesma medida em que nunca houve democratas de esquerda a comerem criancinhas ao pequeno-almoço ou a fazerem orgias báquicas dentro das igrejas e a cuspirem nos santinhos, para citar a paranóia propagandística do regime de Salazar.

A necessidade de uma auditoria integral

Em segundo lugar, a tirada de Paulo Portas é uma manobra de diversão típica do marketing político (já sobejamente explicado em «Estratégias de Manipulação Mediática» e noutros artigos de Noam Chomsky); destina-se a desviar as atenções de um conjunto de questões eminentes postas por vários partidos e movimentos de cidadãos dentro da sociedade portuguesa. Relembremo-las sumariamente:

  1. Antes de estabelecer quaisquer acordos internacionais, antes mesmo de iniciar quaisquer negociações, é imprescindível fazer uma auditoria integral às contas públicas e à dívida externa e interna, a todas as contas actualmente metidas no saco da dívida. Estabelecer as condições de pagamento de uma dívida sem saber ao certo quais os seus montantes, a sua origem, a matéria a que diz respeito, isso sim, é uma irresponsabilidade aflitiva. Nenhum banqueiro na perfeita posse do seu juízo admitiria encetar um negócio privado ou renegociar uma dívida sem conhecer o objecto da negociação – então como admitir que este procedimento seja adoptado para a coisa pública?
  2. Dentro do «saco» da dívida externa existem muitos tipos de dívidas. Umas provêm dos pedidos directos de empréstimo ao Estado, outras dizem respeito à banca privada; umas resultam de actos de especulação financeira, outras de despesas necessárias ao conjunto da sociedade; umas resultam de actos normais da administração, outras de actos de corrupção, favoritismo pessoal, má gestão e ganância. Uma parte da dívida é privada ou mesmo ilegítima; não é da responsabilidade do colectivo dos contribuintes, e portanto não deve ser paga pelos contribuintes, mas sim por aqueles a quem diz respeito.
  3. Se houve má gestão política e financeira do país e das contas públicas, paciência, está feito – é assim que funciona a democracia. O que há a fazer é chumbar os representantes incompetentes na próxima oportunidade eleitoral e substituí-los por quem saiba da poda. Mas há casos em que o erário público foi desbaratado em benefício de interesses pessoais ou negócios privados (nacionais ou estrangeiros), sem que possa ser demonstrada a necessidade pública desses actos – esses casos não podem ser aceites como má gestão pública, porque objectivamente trata-se de gestão em proveito próprio, corrupção, atentado ao bem público. O lugar das dívidas daí resultantes não é a mesa de negociações da dívida soberana, mas sim os tribunais nacionais e internacionais. A parte privada ou ilegítima da dívida deve ser retirada do caderno de encargos e da mesa de negociações; deve ser retirada da administração financeira e transferida para o lugar que lhe compete: a administração da justiça.
    Acontece que alguns dos responsáveis pela parte ilegítima da dívida nacional são muito provavelmente... os próprios credores – e nesse caso sim, pôr-se-ia muito naturalmente a questão de não pagarmos essa parcela da dívida. Se, por exemplo, as investigações internacionais em curso acabarem por demonstrar a promiscuidade de interesses entre as agências de notação (rating) e as instituições financeiras que beneficiam da escalada de juros da dívida, então pagar juros inflacionados seria, mais do que condescendência, conluio de agiotagem.

Velhos métodos obscurantistas

Paulo Portas acrescenta novo andar ao seu castelo de alucinações paranóicas afirmando que, nos países em que foi exigida a reestruturação da dívida (nas palavras de PP: «recusaram pagar a dívida»), em particular na Argentina, seguiu-se a convulsão social, o caos, o roubo da propriedade privada, e por fim o pagamento forçado e duplicado da dívida – é a teoria da inevitabilidade cumulada de crime e castigo.
Este tipo de desonestidade intelectual assenta numa salgalhada de factos históricos distintos, ocorridos em países diferentes, em épocas diferentes, sob regimes diferentes [adiante se explicará em que consiste a salgalhada]. É como se, ao analisarmos o período político que vivemos hoje em Portugal, nos puséssemos a falar da acção nefasta da Pide – não só não faz sentido, como chega a ser ofensivo.

O caso argentino: resultados duma moratória

Vejamos resumidamente o que aconteceu na Argentina, já que Paulo Portas teve a bondade de a trazer à liça.

A partir de 2003, com a eleição do presidente Kirchner (e mais tarde com a presidenta Kirchner, até 2009), a Argentina entrou num rumo estrategicamente planeado, visando a reestruturação da dívida, o reforço do tecido produtivo e o desenvolvimento sustentado.
A moratória ao pagamento da dívida, imposta pela Argentina, não foi estabelecida por uma corja de irresponsáveis, como sugerem o CDS, o PSD e o PS, mas antes por um povo responsável e cioso do seu futuro. Foi precisamente esta seriedade que obrigou os credores a renegociarem em termos mais razoáveis.
Neste processo, neste país e nesta época a que nos estamos a referir, não houve caos; não houve perda de bens; não houve sangue nas ruas; concluído o processo, a Argentina não teve de pagar mais – ao contrário do que afirma o CDS, a dívida foi reduzida para cerca de metade do seu valor anterior.
Houve nacionalizações, sim, mas apenas daquelas empresas que, sendo necessárias à estruturação e impulsão da economia argentina, tinham sido indevidamente privatizadas em época anterior. Porque será que os centristas não mencionam este «pequeno» pormenor?
«A Argentina manteve a moratória por prazo indefinido e apresentou a seus credores um contrato de adesão, numa base take-it-or-leave-it. Sustentou a sua posição contra grande pressão do exterior. Suportou muitas ameaças e previsões sombrias. No final, a grande maioria dos credores resolveu take it. [...] A adesão dos credores acabou superando as expectativas, chegando a 76% da dívida em moratória. [...]
O PIB aumentou nada menos que 9% em 2004 depois de ter crescido 8,8% em 2003. [...] Para 2005, o FMI prevê crescimento de 7,5% na Argentina [...].
Apesar da rápida expansão da economia, a inflação foi razoavelmente controlada e o balanço de pagamento registou superavit em transacções correntes. Medida por um índice de preços ao consumidor, a taxa de inflação média anual na Argentina caiu de 25,9% em 2002 para 13,4% em 2003 e 4,4% em 2004.[...] a Argentina não teria alcançado esses resultados se estivesse seguindo as políticas preconizadas pelo FMI [...]. O FMI recomendou insistentemente que o governo argentino aumentasse as metas de superavit fiscal primário para níveis próximos, em termos de percentagem do PIB, às adoptadas pelo Brasil. O ministro da Economia, Roberto Lavagna, não aceitou. A Argentina fixa metas de superavit primário que ela considera compatíveis com o crescimento da economia e outros objectivos do governo. Esse foi um dos princípios que orientaram a bem sucedida reestruturação da dívida externa pública. [...]
A Argentina também não tem preconceito contra controles de capital. Restrições à entrada de capitais especulativos ou de curto prazo têm sido aplicadas com frequência para ajudar a conter a valorização do peso e reduzir a vulnerabilidade externa do país.»
[in Paulo Nogueira Batista Jr., Estudos Avançados, 19 (55), 2005, «Brasil, Argentina e América do Sul»]

Hoje (desde 2010), a Argentina volta a enfrentar algumas dificuldades – não em resultado das posições corajosas que tomou no passado recente, mas sim porque os lobbies financeiros e a oposição de direita conseguiram finalmente forçar o governo nomeado depois das eleições de 2009 a aceitar os interesses e condições propostos por uma pequena parte da banca norte-americana que não aderiu aos acordos de 2005. Este sector da banca andou durante vários anos pelo mundo fora a comprar títulos da dívida argentina, acrescendo-lhes juros para seu benefício próprio. (Ver artigo sobre a evolução dos acontecimentos em Les banquiers se réjouissent, entre outros disponíveis nas publicações do CADTM.)

Já que o CDS e restantes políticos portugueses do chamado «arco do poder» estão apostados em repetir à exaustão a palavra «responsabilidade», temos de sublinhar como no caso da Argentina, e de resto em todos os outros casos, se demonstra a forma irresponsável e desumana como a finança internacional (incluindo o FMI, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia) especula com a vida dos povos.
Em futuros artigos procuraremos analisar e tirar lições do caso de outros países – Brasil, Equador, etc.

O bom pagador e o credor ansioso

A tese do crime e castigo tem vindo a ser soletrada todos os dias, desde a campanha para as eleições presidenciais. Este artifício busca controlar o eleitorado por meio do medo.
O exemplo dos processos recentes ocorridos em diversos países (Argentina, Brasil, Equador, Islândia, etc.) demonstra precisamente o contrário:

A banca credora procura sempre especular abusivamente; serve-se dos políticos e dos governos neoliberais como cavalos de Tróia; mas quando estes governos se tornam independentes e impõem uma moratória para renegociação, a maioria dos especuladores imediatamente faz marcha atrás e acede a reestruturar a dívida.
O objectivo último de qualquer credor é, muito simplesmente, recuperar o dinheiro que investiu e obter algum lucro. Se não puder inflacionar esse lucro por meios sujos, paciência, contentar-se-á com o que puder agarrar. Neste aspecto, a lógica do agiota internacional de serviço não difere em nada da do merceeiro desonesto, quando este tenta aldrabar a lista de compras fiadas – mais depressa aceitará a correcção das aldrabices que procurou produzir, do que se sujeitará a não receber nada...

É certo que o agiota não sente qualquer escrúpulo em fazer um povo inteiro passar fome, como forma de punir e atemorizar. Mas preocupa-o muito mais a perspectiva de não recuperar o seu dinheirinho. Esta sim, é uma espécie de lei da natureza com a qual devemos contar antes de tomar qualquer decisão responsável.

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