14/05/11

Opacidade, corrupção e dívida

Ao longo de várias semanas de declarações, debates, frente-a-frentes, entrevistas, mesas redondas, os porta-vozes televisivos da esquerda não têm dado resposta eficaz ao embuste que pretende fazer crer que  um país cai em desgraça quando impõe a renegociação da sua dívida; nem às trafulhices que ocultam as razões pelas quais a UE nos cobra juros mais altos que o FMI. Estranho silêncio.

Sobre a questão da Argentina, já aqui apontei elementos para uma resposta à campanha neoliberal. Ver também CADTM e ATTAC.

Na ausência duma explicação convincente sobre a questão dos empréstimos aos Estados dentro da União Europeia, passei uma semana a escavar na Internet. É bem possível que eu tenha percebido tudo às avessas – o sistema europeu é opaco. Por isso, se me enganei, espero ansiosamente que algum iluminado me esclareça.

Conclusões específicas:

  1. O BCE (Banco Central Europeu) proibiu-se de emprestar dinheiro directamente aos Estados. (Esta parece ser a questão central que dá origem ao debate patético sobre «solidariedade» entre Estados europeus; patético porque o que está em causa não é solidariedade, mas sim saber quem arrecada juros da miséria alheia.)
  2. No entanto, o BCE não se proibiu de emprestar dinheiro aos bancos privados a uma taxa fixa de 1,25% (em 2010 a taxa era de 1%). Esta operação permite à banca privada fazer negócio com dinheiros que não possui. Entretanto, supõe-se que a maior parte do dinheiro do BCE venha do bolso dos contribuintes europeus. Por outras palavras, os contribuintes estão a emprestar dinheiro à banca privada, sem nunca serem consultados e sem jamais receberem os respectivos juros.
  3. Com o dinheiro que não tinham e foram pedir emprestado ao BCE, os bancos privados emprestam dinheiro aos Estados (comprando títulos de dívida, participando em investimentos públicos, etc.). 
  4. Estes empréstimos rendem juros variáveis, visto que os bancos centrais tiveram o cuidado prévio de se demitirem da regulamentação e fiscalização destas operações da banca. Em suma: quando se empresta à banca privada, o juro é fixo e regulado; quando se empresta ao público contribuinte, o juro é variável e pode subir até à estratosfera.
  5. Embora o BCE se tenha proibido de emprestar dinheiro aos Estados, não se proibiu de comprar títulos de dívida no mercado financeiro – ou seja, não se proibiu de fazer negócios no mercado financeiro privado, à custa do dinheiro dos contribuintes.
  6. Por isso, a seguir, o BCE compra uma parte dos títulos de dívida existentes no mercado, aos bancos privados a quem emprestou dinheiro. Obviamente o BCE irá acrescentar um novo juro (o seu lucro) a esses títulos de dívida.
  7. Finalmente, alguém terá de pagar toda esta trafulhice, como convém a uma boa sociedade capitalista. O devedor terá de pagar o somatório de: montante inicial do empréstimo; mais o juro primário de 1,25% cobrado pelo BCE à banca privada; mais o juro secundário dos bancos privados (variável); mais o juro terciário do BCE (variável). Aí está porque os juros da «ajuda» europeia saem mais caros que os do FMI – no caso do FMI a trafulhice parece não implicar tantos intermediários.
  8. Existe uma salgalhada de FEEF [1], EFSF, ESFS, etc. Alguns destes organismos europeus foram dotados de fundos na ordem das centenas de milhar de milhão de euros, podendo chegar ao bilião. Estes fundos serviriam para comprar dívida dos países europeus no mercado primário. A ideia seria pôr em marcha um sistema financeiro de solidariedade. Mas, mal foram conhecidos os fabulosos montantes dos fundos, as instituições financeiras privadas ficaram com os olhos em alvo e atacaram em força, procurando servir-se deles. Neste momento existe grande discussão interna, muitas reuniões (anunciadas ao público como bondosos debates sobre a solidariedade financeira), e ainda não se sabe bem onde tudo isto vai dar. Apesar de nada se saber sobre o futuro de todas estas siglas, elas já andam abundantemente na boca dos políticos, a propósito do resgate da dívida portuguesa... Enfim, tudo isto é simultaneamente kafkiano e orwelliano.
  9. Os bancos não precisam de se preocupar demasiado com a possibilidade de um dos países devedores entrar em incumprimento – o BCE serve de escudo e garantia.
  10. Algures na penumbra dos gabinetes europeus existem desde 2010 (ou antes?) documentos dando conta da incapacidade deste sistema europeu de empréstimos em círculo vicioso aguentar mais de 4 anos sem estoirar com a Eurozona. Estes documentos foram produzidos nas mesmíssimas reuniões que decidiram criar o modelo de resgates da dívida em curso e a tal barafunda de siglas e fundos. Ora os referidos documentos preveem a restruturação das dívidas externas da Grécia, Portugal e Irlanda (e quem sabe futuramente a Espanha e outros países) no prazo de 2 a 4 anos, como forma de impedir in extremis o estoiro da Eurozona. Assim, a restruturação da dívida, apresentada por José Socrates como o diabo na Terra, está afinal... oficialmente prevista como solução final!
  11. A maior parte dos títulos da dívida dos países periféricos da UE é detida por banqueiros europeus. Em 2008 48% dos credores da dívida portuguesa eram bancos franceses e alemães. A situação da Espanha e da Grécia é semelhante.
    Isto significa que os principais credores da dívida portuguesa não vêm dos EUA, do FMI, da China, ou de Marte, mas sim dos países hegemónicos dentro da própria UE.
  12. A origem, natureza e instrumentos da dívida externa deveriam ser minuciosamente conhecidos por todos aqueles que têm de pagá-la (ou seja o povo).


    Espanha Portugal Grécia
    dívida externa


    em milhões de euros 1.779 381 385
    em % do PIB 169% 233% 162%








    por devedor


    governo 299   17% 98   26% 206   53%
    empresas financeiras 823    47% 210   55% 112   29%
    outros 645    37% 73   19% 68   18%

    Espanha Portugal Grécia

    Como se vê, segundo as contas do Research on Money and Finance (baseadas nas do Banco de Portugal), em «The Eurozone Between Austerity and Default», 55% da dívida externa portuguesa não diz respeito aos interesses colectivos do país, mas sim ao endividamento das instituições financeiras privadas.[6] É portanto ilegítima.[1]  Segundo o FMI, essa parte é «apenas» de 21,76%.
  13. É imprescindível realizar uma auditoria integral à dívida soberana portuguesa.[4] Doutra forma poderíamos gastar os próximos 200 anos a discutir os factores da dívida – tudo não passaria de uma grande ficção telenovelesca.[3]

Conclusões gerais:

  1. A União Europeia tornou-se uma torre de marfim assente num labirinto infernal. Este labirinto encontra-se em crescimento constante – todos os meses se criam novos corpos administrativos e financeiros concorrentes entre si, produzindo uma nuvem opaca impenetrável à perspicácia do cidadão comum. Nesta altura dos acontecimentos a profusão de instâncias e siglas é tão grande, que diversos analistas e até governantes laboram em erros crassos, confundindo siglas, instrumentos financeiros e processos.[2]
  2. Não é possível aceder a projectos, apoios, subsídios e gabinetes da UE sem recorrer a processos corruptos em sentido genérico, ou sem uma equipa milionária de advogados, acessores e peritos. Pertencer à UE significa hoje estar sujeito a uma máquina de corrupção inelutavelmente contagiante, que arrasta para dentro do seu póprio pus todo o pensamento e acção de cada cidadão, que cria uma cultura generalizada de corrupção prática e intelectual.
  3. A máquina burocrática da UE tornou-se um paradigma da caixa negra de Vilém Flusser aplicada à política. Funciona por si mesma, alimenta-se de si mesma, é independente da vontade do utente.
  4. A questão da solidariedade dentro das instituições da UE, que a esquerda democrática naturalmente pretende ver posta em marcha, é uma batalha perdida. A máquina burocrática da UE está toda ela feita para reforçar o poder antidemocrático e o domínio dos interesses financeiros hegemónicos (e privados) de dois ou três países dentro da Europa. Tudo o mais são doces miragens ideológicas.
  5. O constante crescimento labiríntico da máquina da UE acabará por fazê-la implodir. O melhor que os militantes democráticos podem fazer é contribuir para acelerar esse processo, provocando a implosão da UE o mais depressa possível, de modo a que possamos todos voltar a um salutar exercício da democracia.
  6. Independentemente da batalha perdida pela democracia [5], não pára de aumentar o número de analistas e economistas que concluem pelo fracasso total da Eurozona.




Notas:

[1] No caso português parte da dívida é no mínimo ilegítima – e, na nossa opinião, é batota não levar em linha de conta as parcerias público-privadas, o estranho caso do negócio dos submarinos e dos carros blindados, as pontes, bibliotecas, escolas, deitadas abaixo para dar lugar a novas construções exactamente para o mesmo efeito e no mesmo lugar, etc. No caso grego é quase certo que uma parte da dívida externa seja odiosa. Se calhar alguns leitores pensarão que o termo «dívida odiosa» é um epíteto de propaganda política. Nada disso; trata-se de um conceito jurídico consagrado na lei internacional. Ver definição oficial aqui e aqui [fr] ou aqui [en]. Os precedentes jurídicos internacionais indicam que a parte odiosa das dívidas não deve ser paga

[2] O nosso presidente Cavaco Silva adora mencionar o FEEF, não perde uma oportunidade, mas provavelmente também está enganado na sigla. Nem quero imaginar como serão as aulas de economia deste senhor.

[3] Seria interessante perceber, por exemplo, como é que a Alemanha, a Bélgica e a Espanha gastam 1,1 a 1,4% do seu PIB em armamento, enquanto Portugal gasta 2,0% – bem me parecia que estávamos em guerra... Neste capítulo a Grécia é campeã com 4% – fujam, que vêm aí os Turcos!

[4] A comissão de auditoria não pode ser de natureza apenas parlamentar (esta proposta, apresentada por António Barreto na semana corrente, é um pouco inocente... equivale a instalar a amante do ladrão na cadeira do juiz...); deve ser uma comissão mista: representantes das instituições democráticas portuguesas, representantes dos movimentos sociais, e entidades independentes, como se fez no Equador.

[5] Exemplos evidentes: o desprezo pelos referendos em França e na Irlanda; o desprezo expresso de Merkel pelos parlamentos nacionais.

[6]  A ideia de que este jogo de endividamento da banca privada faz bem à economia portuguesa é certamente mais outro logro, mas não se pode esclarecer tudo duma assentada num simples artigo.

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